Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A escola de jornalismo

As possíveis verdades ainda inexistiam para o sujeito que sabia apenas escrever bem. Tinha na prática das redações o motivo para compreender e, possivelmente, modificar os valores de um ofício que o transformava a cada dia. Resolveu experimentar a escola de Jornalismo. ‘De nada adianta. Qual é a razão de formar jornalistas se a liberdade de expressão é um direito de todos?’, diziam os companheiros. Mas passar pela faculdade era a certeza de constituir espaços comunicativos. Precisava daquilo. Começou a estudar.

Logo compreendeu por que os indivíduos se transformam em personagens, as informações em notícias, as histórias em reportagens. Do ‘achismo’ viria a pauta, modificada por técnicas simples, baseada em pesquisas e entrevistas, igual ao cotidiano de quando tinha uma dúvida e logo procurava uma pessoa e fuçava os arquivos. Não havia verdades, mas sempre lacunas a serem preenchidas. A vigília do professor de Ética caía aos ouvidos. Aprendera que Kant e Hegel tinham muito mais a ver com o cotidiano dele do que imaginava. Era nas cadeiras quase quebradas da sala de aula que começava a sentir as verdadeiras dores da profissão.

A atenção redobrara como forma de não prejudicar o outro, por valorizar o interesse público e a cidadania. O sensacionalismo soava como medo de criar pânico. O sentido era a vida e não a vulgarização da morte. A tentativa era pelo debate diante de tantas injustiças.

A aporia da verdade

Entendera o que é comunicação. Impossível nos comunicar? Impossível não nos comunicar? As questões iam além de um mero fluxo emissor-receptor. Via agentes, humanos, em constante interação.

Aprendeu na escola que o rádio possibilitava a interatividade muito antes da internet. O sonho da abertura viera pelo universo sonoro, o espelho agudo de outros fazeres, a fala viva da informação. Diálogo devia ser a palavra de ordem da emissora e o direito, por sua vez, a ordem da palavra no radiojornal.

A tela se ampliava na palavra do professor de Telejornalismo. Havia agora a possibilidade de enxergar o outro distante e, ao mesmo tempo, disponibilizar o mundo próximo. Transformava a notícia em telas documentais. Fazia os olhos viajarem pelos mitos do cotidiano, pelas reações dos próximos, pela fala de outrem.

Da fotografia, entendia a sua construção, as tramas entre realidades e ficções, produções e pós-produções. Finalmente, poderia ir além do senso comum ‘uma imagem vale mais do que mil palavras’. Da interpretação do fato, percebera que não há texto sem imagem.

Desenvolvia a internet como modelo de reorganizar o universo das coisas. O original modificado em metaparágrafos, constituído pelo desconhecido que poderia interferir diretamente no estático. A notícia já não tinha dono, apenas girava. Um jogo de linguagem nos canais e cores contemporâneos. A notícia fugia ao controle, mas estava livre.

Aprendera a aporia da verdade. Ora, o projeto moderno falhou, mas só a abordagem sincera das coisas pode esclarecer. Via que o jornalista, enquanto herdeiro de revoluções, agora surfava na liquefação de sentidos com a sua prancha de linguagem. Há uma veracidade material no mundo, mas será que conseguimos apontá-la?

A gramática dos direitos

Via as narrativas que nos circundam; que se articulam e rearticulam midiaticamente. Podia buscar agora as margens, o ‘entre’ dos assuntos do mundo. Não estava mais de um lado ou de outro lado, construía pontes de diálogo entre as partes da informação. Essa foi a porta de saída de seu, outrora, mundo dicotômico.

Nos jornais-laboratório perdia o medo de ser repórter. Fazia da presença a reconstituição do fato. Como editor, remontava realidades que o faziam temer anteriormente nos veículos comerciais em que trabalhara. Era sujeito da verdade no processo de jornalismo responsável. Respeitava o colega, o coletivo, o público…

Nas aulas de História, via que o passado poderia ajudá-lo a formular as questões daquela pauta mais quente, digna de primeira página. Conhecera teorias que o aproximavam de um Brasil ainda (des)conhecido. Já nas de Economia, percebia que o mundo era algo muito mais tridimensional do que meros números e correntes de dinheiro. Entendera o funcionamento da gestão das instituições midiáticas. Percebera que um bom funcionamento empresarial não depende de explorar os diversos outros jornalísticos. Outros esses que vão desde as fontes e personagens até os próprios colegas repórteres.

Desembocava assim nas aulas de Doutrinas Políticas, onde poderia compreender por que o movimento social se articulava de tal forma e o movimento patronal de outra. Via como o jornalismo era visto pelo socialismo, neoliberalismo, comunismo, colonianismo e outros ‘ismos’. Em Deontologia e Legislação, entendera o que finalmente significa ‘direito à comunicação’ e como isso não significa uma atomização social. A gramática dos direitos é algo para ser compartilhado e modificado pelo mundo da vida, pela coletividade, pela ação comunicativa.

O universo inventado da mídia

Da monografia final, surgia o jornalista desconstruído. Não era mais aquele que apenas gostava de escrever, gostava do código-fonte da sociedade. Sem a obrigatoriedade do diploma, pôde cumprir a velha máxima de que ‘jornalista tem de conhecer de tudo’. Tomou a pílula vermelha de Morpheus para conhecer o além do tudo.

Retornou à redação. A vigília dos professores e livros o conduzia a repensar uma notícia copiada da internet. Queria rediscuti-la antes da publicação. Precisava de fontes e informações. Queria reportagem, reciprocidade e possíveis respostas. Tinha a bandeira de quem não aceita o monopólio do poder. Queria fazer o jornal diferente, independente, democrático.

O tempo foi passando pelos estágios e empregos. O dito da faculdade contrastava com o dizer da realidade sombria das redações, dominadas pelo pensamento da notícia pronta e estática advinda das agências de notícias e dos grandes meios que dominam a televisão brasileira. A angústia dizia que as resoluções eram inseparáveis. Conquistara o espaço no topo daquilo que desejava ser. Não queria sucesso, mas respeito. Algo o incomodava. As leituras e a TV o faziam dormir mal, a internet o separava das pessoas, sobrava o rádio que ligava dentro do carro, mas depois esquecia. O conteúdo seria o problema?

Já não aguentava as celebridades travestidas como expoentes vaidosas no universo inventado da mídia das artes, das políticas, dos desportos. Queria outros sujeitos que questionassem os fatos que conviviam com os sentidos daquele jornalista. ‘Despoluam os rios, não joguem lixo nas ruas, plantem e distribuam comida, tirem as pessoas da favela, amem, divirtam-se na escola, criem empregos, pratiquem outras modalidades além do futebol, respeitem e sejam honestos.’

Sociedade sem jornal é um labirinto impossível

Falava e cobrava dos outros as ações que podia concretizar. Pergunta-se onde? Surgiam dúvidas, malícias, medos de se trair (pelo dinheiro) diante de convicções do passado. Perguntava o motivo? Viver em paz era seguir triste porque precisava relatar algumas situações que mudariam o destino daqueles que sofriam por desleixo.

Chega! Era o grito de jornalista.

Queria explicações sobre o jornalismo. Defendia a liberdade de expressão e de imprensa como bandeiras de uma democracia à brasileira, sem falsas concessões aos donos dos meios de comunicação de massa. Tinha três opções a seguir:

(1) Abrir o próprio jornal, um espaço para as pessoas reportarem as alegrias e as tristezas da vida;
(2) Entrar na carreira acadêmica, mas não pelo ensino, pesquisa ou extensão separadamente. Queria tudo junto, para dialogar com novos jornalistas, leitores e cidadãos;
(3) Escrever incessantemente. Ser blogueiro, radialista livre, cinegrafista amador. Ensinar como jornalista a porção quero-ser-jornalista de cada um.

Ao olhar para o diploma, certificou-se do ofício que tinha escolhido. Lembrara do experiente professor que experimentara o sentido da aprendizagem continuada na escola de jornalismo. Voltou a ser aluno, repórter, cidadão. Descobriu que uma sociedade sem jornal é um labirinto impossível.

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Respectivamente, mestrando em Ciências da Comunicação da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e professor de Radiojornalismo da mesma instituição