Saturday, 05 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1308

Marçal e o tiro no pé da imprensa

(Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)

A imprensa pode estar dando um tiro no pé quando coloca objetivos comerciais acima dos princípios éticos e políticos na cobertura das eleições municipais de outubro.  Esta possibilidade ganha relevância quando se compara o tratamento dado pela mídia brasileira ao ultraconservador Pablo Marçal e o comportamento de grandes jornais europeus e norte-americanos ao dar visibilidade mundial ao então obscuro Adolf Hitler, na Alemanha, nos anos 30 do século passado.

O influenciador Pablo Marçal, candidato do Partido Renovador do Trabalhismo Brasileiro (PRTB) à prefeitura de São Paulo, não preenchia os requisitos eleitorais para participar de debates promovidos por emissoras paulistas de televisão, mas ele foi personagem central em todos eles.  O motivo é essencialmente comercial, porque a agressividade, as mentiras e contestação das regras eleitorais atraem audiência e, consequentemente, anúncios pagos.

Este mesmo comportamento esteve por trás da agenda noticiosa de grandes jornais como o The New York Times que, nos anos 30 do século passado, publicaram matérias, pretensamente neutras, mas que acabaram dando visibilidade e ocultando a natureza autoritária, racista e expansionista do criador do nazismo. É o que mostra o livro Berlim 1933, (1) do escritor alemão Daniel Schneidermann, autor de vários trabalhos sobre o papel da imprensa mundial na ascensão de Hitler ao poder.

A batalha da atenção

Marçal, assim como Donald Trump, o argentino Javier Milei, o salvadorenho Nayib Bukele e o húngaro Viktor Orbán, transformaram a contestação ao modelo liberal democrático em sua principal arma publicitária para ganhar a simpatia de cidadãos frustrados por sucessivas decepções políticas causadas por governos tanto de esquerda como de direita. Hitler usou o mesmo expediente para conquistar o coração de alemães empobrecidos pelas drásticas punições sofridas após perderem a Primeira Guerra Mundial, em 1918, para ingleses e franceses. E deu no que deu, 25 anos depois.

Agora, com a avalanche noticiosa, com a informação em tempo real e a interatividade globalizada nas plataformas digitais, o condicionamento das percepções do público se tornou imensamente mais rápido e amplo. A imprensa não está sozinha neste processo porque convive, alimenta e retroalimenta os chamados influenciadores digitais, personagens novos no mundo da comunicação. Mas a ela cabe o papel de ser a referência em matéria de confiabilidade informativa.

Quando a imprensa coloca objetivos comerciais em primeiro lugar, ela cria um padrão noticioso capaz de neutralizar o efeito da desconstrução das chamadas fake news (notícias falsas). O show midiático de Pablo Marçal, associado a cadeiradas e pugilato, chama mais a atenção de telespectadores e usuários de plataformas digitais do que a denúncia de notícias falsas. Esta distorção no processo de formação de percepções do público é uma ferramenta cada vez mais usada por políticos de extrema direita, sem que a mídia, aparentemente, tenha se dado conta disto.

O dilema da imprensa

A imprensa contemporânea vive um momento extremamente delicado por conta da crise no seu modelo de negócios causada pelas inovações tecnológicas digitais. É, portanto, compreensível que ela tente explorar todas as possibilidades capazes de reduzir os efeitos de uma lenta degradação de seus ativos materiais e imateriais. Mas isto implica um risco enorme tanto para a instituição imprensa, como principalmente para seu público-alvo. Hitler, e outros admiradores seus, já mostraram ao longo da história recente que a omissão da imprensa na identificação de tendências autoritárias, xenófobas e imperialistas acaba sempre se voltando contra a mesma imprensa.

Obviamente, os grandes conglomerados jornalísticos do mundo estão diante de uma opção complicada em que devem escolher entre o presente e o futuro. De um lado, está a sobrevivência financeira imediata e a manutenção da influência política, enquanto do outro, está a fidelidade ao compromisso com a produção de notícias capazes de gerar conhecimentos socialmente relevantes.  Desde janeiro deste ano, a cobertura das campanhas eleitorais em 66 países e mais a União Europeia mostrou que, na maioria absoluta dos casos, a imprensa optou pela sua sobrevivência imediata.

Disponível em francês em https://www.amazon.com/Berlin-1933-presse-internationale-Hitler/dp/2021369269/ref=sr_1_1

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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.