Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O direito à história

O debate sobre o acesso a documentos secretos do governo é feito, nos jornais, a partir de cinco mitos falsos.

1º mito – O de que, num regime democrático, toda informação deve ser pública. Ocorre que nem sempre democracia é informar. Com freqüência é não informar. Em todos os países há sigilos legais. Padre não pode tornar públicas as confissões. Médicos e advogados devem guardar segredo sobre consultas. Com relação ao Estado, há inclusive consenso em relação a temas que não são nunca acessíveis – correspondência com outros países, documentos sobre fronteiras, efetivos e planos militares. Assim está, inclusive, em nossa Constituição.

2º mito – O de que o acesso às informações deve ser sempre imediato. Sem reconhecer o dado histórico de que certo distanciamento do fato vem se mostrando comprovadamente construtivo, para a democracia. Na França o prazo médio é 30 anos, mas há exceções – 100 para assuntos jurídicos, 120 para dados pessoais, 150 para informações médicas (só no ano de 2.154 se saberá de que morreu Arafat). Na Itália a média é 50; mas vai a 70, quando refira situações pessoais. Suécia vai a 70 anos. Portugal, 60 anos. Nos Estados Unidos a média é 20 anos; mas, em numerosíssimas situações, o segredo é eterno.

3º mito – O de que todos devam ter acesso às informações. Porque numerosas informações, controladas pelo governo, só podem ser acessadas com autorização prévia dos interessados. Alguns países não permitem sequer, à falta do interessado, que sua família o possa requerer. Não é essa a jurisprudência brasileira. Aqui, em simetria como o acesso a informações médicas, também tem esse direito a família. O dado é importante porque cada torturado, ou família de desaparecido, tem antes que conceder autorização para acesso público a essas fichas. Caso não concordem, o arquivo simplesmente permanece em sigilo. Certo que, não havendo familiares conhecidos, então a informação é acessível, pela prevalência do interesse coletivo. Havendo ainda, consensualmente, regras que permitem acesso restrito a historiadores.

4º mito – O de que o governo deva ser juiz da conveniência na liberação da informação. Não é assim, no mundo. Podendo ser dada a informação, quando não claramente vedada por lei, por instâncias fora do Estado – entre outros, Comissários da Informação (Canadá), Ombudsman (Suécia), Comissões sobre o Segredo (França), Cortes Administrativas (Noruega e Finlândia), Tribunais de Apelo Administrativo (Austrália), Cortes Distritais ou Comissões Civis de Serviço (Estados Unidos).

5º mito – O de que eventos históricos devam ter regras especiais. Sendo prevalente nesses casos, sempre, o interesse coletivo da informação. Bom exemplo disso é o Chile. Que em 1990 criou, pelo Decreto 355, uma Comissão Nacional de Verdade e Conciliação – indicando, nos considerandos, sua própria razão de ser: ‘Apenas sobre a base da verdade será possível satisfazer às exigências elementares da justiça; apenas o conhecimento da verdade reabilitará a dignidade das vítimas e permitirá reparar, em alguma medida, o dano causado’. É, para nós, um bom roteiro.

Por tudo isso um debate maduro, sobre os arquivos da Revolução de 64, deve primeiro reconhecer que não podemos ter acesso, democraticamente, a todas as informações sob guarda do Estado. Mas também reconhecer que não há justificativa, política ou ética, para qualquer recusa sistemática de acesso a esses arquivos.

Que interesses de corporações, de membros do governo, dos que sujaram as mãos com sangue inocente, dos que pecaram por omissão, serão sempre menores que o direito do povo brasileiro a sua história. Não como uma vindita, posto que a anistia foi ampla e recíproca. Mas como ato de redenção. De reencontro do país com a versão dos vencidos. Do ato grandioso de conhecer nosso verdadeiro rosto. Doa a quem doer.

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Advogado no Recife (PE), presidente do Conselho de Comunicação Social