Friday, 11 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1309

Caderno de Ciência e as práticas integrativas da saúde

(Imagem de Erik_Johnson por Pixabay)

Nos últimos meses temos nos surpreendido com alguns textos escritos na coluna de ciência do jornal O Globo. Uma microbiologista ataca práticas que hoje são conhecidas como Práticas Integrativas da saúde de forma arrogante e superficial. A missivista usa um discurso persuasivo, característico de influencers e não de cientistas. Nos decepciona muito ver um jornal que defende a democracia e causas progressistas dar voz a uma pessoa extremamente reacionária e desrespeitosa e o mais grave, sem contra- argumentações.

A coluna de ciência deveria servir para informar seus leitores através de artigos escritos por especialistas no tema abordado e, claro, democraticamente aceitando respostas e argumentações. Se aproveitando da importância que lhe foi dada no período da pandemia em torno da campanha de vacinação, a mesma usa uma estratégia de confundir a cabeça das pessoas, comparando as práticas integrativas com negacionismo e desserviço à ciência.

Se ainda há muitas lacunas de conhecimento a preencher, nessas técnicas terapêuticas os benefícios são tão palpáveis, que a OMS, na década de 70, reconheceu-as eficientes. E tal reconhecimento veio de evidências epidemiológicas e melhora nos indicadores de saúde pública, em populações específicas, em dados suportados pela ciência clássica. Por outro lado, quantas vezes já vimos essa mesma ciência dar guinadas de 90 graus, contradizendo aquilo que era dado, antes, como conhecimento ratificado? Qualquer um que se intitule cientista, e tenha mérito para tal qualificação, deve saber que o conhecimento é, provavelmente, infinito; que as verdades nunca são absolutas; que o objeto do estudo varia com a natureza do observador; que grandes descobertas costumam nascer de quebra de paradigmas; e que, na área da saúde, conclusões definitivas demandam uma quantidade enorme de dados sustentando-as, ao longo de um grande intervalo de tempo, além de um nível de consenso muito mais amplo do que a aversão às terapias complementares exibe.

Outra distorção profunda, gerada pela estratégia da autora, quando coloca tudo aquilo que ela desgosta, no mesmo saco, é que o universo das técnicas que ela critica é extremamente heterogêneo. Ela miscigena abordagens terapêuticas milenares com técnicas recentemente desenvolvidas, conhecimento com muita e pouca evidência científica, racionalidades de maior ou menor objetividade, enfim seria aquilo que em linguagem popular, chamaríamos de um “saco de gatos”. Ou seja, usa uma estratégia de misturar tudo, e nivelar por baixo, como se fosse charlatanice, modus operandi que caracteriza uma ciência mal-feita: poluir uma amostragem para distorcer os resultados.

A ciência defendida pelos textos publicados na coluna do jornal O Globo se baseia em um paradigma científico cartesiano, em que tudo deve ser quantificado para ser ciência, e acompanhado de menosprezo às questões emocionais, tendo em vista os ataques à psicanálise pela mesma coluna. Paradigma este que foi quebrado lá no século XIX, com as descobertas da Física e a compreensão de que este era insuficiente para definir o mundo e as questões tão complexas relacionadas à saúde. Imaginamos os físicos Einsten, Plank, Bohar e o filósofo Edgar Morin lendo os textos escritos pela microbiologista em um caderno de ciência em pleno ano de 2024, que decepção seria. Quanto retrocesso!

Uma grande conquista no Brasil foi a inclusão das Práticas integrativas no SUS, através da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares, em 2006, que aconteceu após acadêmicos e pesquisadores concluírem que tais práticas: 1) são todas de baixo intervencionismo/baixíssimo risco; 2) serem todas de custo imensamente inferior aos da medicina científico-tecnológica do 3º milênio; 3) serem todas de mão de obra intensiva, onde o principal instrumento terapêutico é o próprio terapeuta, 4) atuarem todas em fases mais precoces do processo de geração de uma doença, podendo reduzir o número de pessoas que necessitam de cuidado médico mais caro, intervencionista e arriscado e 5) fortalecerem o principio de integralidade do SUS.

Esta política inclui os detentores de conhecimentos tradicionais como as populações quilombolas e indígenas, por exemplo, com as suas diversas abordagens de saúde que constituem uma medicina autêntica e brasileira. Além de oferecer a possibilidade de escolha para pessoas que não teriam acesso a tratamentos com essas técnicas, a não ser no espaço da medicina pública, pois antes desta inclusão apenas a classe média alta tinha essa possibilidade em atendimento privado. As pessoas podem escolher, e mesmo interromper, se concluírem que o tratamento não traz benefício.

Vivemos um momento delicado em relação à circulação de informações, e entendemos como fake news toda a distorção feita pela autora dos textos persuasivos e sem fundamentos. Acreditando na democracia e na importância da imprensa para levar informações seguras para seus leitores, com uma linguagem mais refinada, cabível em um caderno de tanta importância, e para isso sugerimos que a coluna de Ciência deve exigir o mínimo de formação na área para que algo seja  publicado dentro de um determinado tema, pois imaginamos que a missivista deva desconhecer que, segundo a base de dados Pubmed, existem 46.300 artigos científicos publicados em revistas indexadas (aquelas que conquistaram os requisitos para serem incluídas no Index Medicus). Se tivesse dedicado cinco minutos, apenas, a cada um desses documentos científicos, acima contabilizados, precisaria de 60 mil horas (cerca de 2 mil dias, que, excluindo as horas de sono, consumiriam aproximadamente 10 anos de trabalho). Seria isso “bobagem”?

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Marta Rocha de Castro é graduada em Fisioterapia, especialista em medicina chinesa e acupuntura. Mestrado em Psicossociologia de comunidades e ecologia social- EICOS- UFRJ, com pesquisa sobre Medicina Chinesa. Doutora em Geografia pela PUC-RIO, com pesquisa sobre conhecimentos científicos e tradicionais sobre plantas medicinais. Docente na área de Práticas Integrativas da saúde. Autora de dois livros na área de medicina chinesa e de 12 artigos na área de Práticas Integrativas, publicados em revistas científicas indexadas.

Alex Botsaris é médico, infectologista, especialista em Medicina Chinesa, acupuntura e fitoterapia. Autor de mais de dez livros na área de Medicina Chinesa, incluindo o clássico “Fitoterapia Chinesa e ervas brasileiras” e de artigos com base nestes temas. Atualmente reside em Portugal onde exerce as atividades de Médico na área de Medicina Tradicional Chinesa.