Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Escorregões iniciais de 2006 sinalizam ano difícil para o leitor

Acabado o descanso, o Contrapauta inicia o ano com um balanço superficial dos primeiros dias de 2006. Superficial, porque a amostra restringe-se à Folha de S.Paulo e ao O Estado de S.Paulo, os dois únicos jornais de circulação nacional disponíveis na cidade de Ubatuba, no litoral norte paulista.


Vários textos merecem reflexão, a começar pelo artigo do escritor e professor Candido Mendes, de 77 anos, membro da Academia Brasileira de Letras e da Comissão de Justiça e Paz, à qual é ligado desde os anos 70, e ‘senior’ do Conselho Internacional de Ciências Sociais da Unesco (o braço da ONU para Educação, Ciência e Cultura). Desde 28 de dezembro passado, informa o site da ONU, o professor também está entre os 20 integrantes da Aliança das Civilizações, uma iniciativa do governo socialista da Espanha, com apoio da ONU, que pretende ‘desenvolver o diálogo e o intercâmbio entre as culturas ocidental e oriental, sobretudo, entre o mundo cristão e o muçulmano, a fim de promover a paz e conter o radicalismo que alimenta tanto o terrorismo internacional quanto a guerra contra o terrorismo’.


Lastreado na experiência e no currículo que não deixa qualquer sombra de dúvida sobre sua capacidade e idoneidade, Candido Mendes assinou, na Folha de S.Paulo de 03/01, o artigo ‘Informação e ditadura da suspeita’, de leitura mais do que recomendável. O texto corrobora bom número de posts veiculados no Contrapauta durante o ano passado sobre o ativismo das maiores empresas de comunicação do país na crise política e é, acima de tudo, brilhante e arrasador desde as primeiras palavras.


Ele começa questionando:



‘Crise, aliás , pseudocrise, ou crise nascida da credibilidade da crise? Até onde, nessa pergunta, já estamos diante inclusive das sentenças mediáticas, em que se plasma uma opinião pública por sobre a espontaneidade das convicções-cidadãs?’


‘Não é outro talvez o problema mais grave da dita democracia profunda, hoje em debate na ONU. Farão os meios de comunicação o deslinde entre a absoluta isenção no informar e o dar à mesma a interpretação, ou o comentário, como se espera do veículo que a porta?’


Mais adiante, depois de colocar o ex-deputado e ex-ministro José Dirceu como o imolado símbolo da crise, acrescenta:



‘A desmoralização do denuncismo, de toda forma, pode ser o saldo da crise, ou pseudocrise. É inseparável do repúdio, pela consciência-cidadã, da informação manipulada e sua conseqüência mais grave para o avanço da democracia profunda. Ou seja, a distância entre opinião pública e formação da consciência popular pela sofreguidão mediática.’


Nos dois parágrafos seguintes, trata de algumas das indecências que vieram à tona envolvendo outros parlamentares de uma das Legislaturas mais maldotadas da história do Congresso:



‘As obsessões pelo impeachment descartaram a própria verossimilhança, transformando o dinheiro de Cuba nas clássicas suspeitas do ‘ouro de Moscou’. O valerioduto jorra simetricamente entre tucanos da mais alta estirpe e petistas da mais ilibada reputação. A liderança do PSDB só pode sair do empate da abominação propondo o inquérito segregado, fora de todo micróbio petista. O caixa dois dos bons separa o trigo mineiro do joio poluído do ABC.’


‘A impaciência do relator Serraglio é a de quem sabe que tem de bater em martelo diante dos impasses em distinguir ou poupar um abuso generalizado do poder econômico no quadro político em que os indigitados ‘mensalões’ repetem e modernizam o nepotismo da República Velha e as clientelas que ainda povoam no atual Congresso Nacional o baixo clero e seus Severinos.’


Candido Mendes não sensibilizou os pauteiros de plantão. A repercussão foi zero. Além do mais, outra polêmica – a que envolveu o secretário de Políticas Públicas, do Ministério da Cultura, Sérgio Sá Leitão, e o poeta, escritor e colunista da Folha de S.Paulo, Ferreira Gullar, também de biografia irretocável. O intercâmbio de impropérios entre os dois pela imprensa ganharia volume, que ainda teria participação de Caetano Veloso a atirar contra o governo. Toda a pinimba reside na nova tentativa do ministério de descentralizar a distribuição de incentivos para produção cinematográfica. Vários interesses poderosos viram-se contrariados e o bate-boca só terminou quando o ministro Gilberto Gil desviou o tiroteio para si. ‘Peçam a minha cabeça’, desafiou, dando razão ao ataque de seu auxiliar aos ‘ ‘ex-privilegiados do cinema’.


Todos os jornais despejaram tintas sobre o vai-e-vem fora de moda, que ressuscitou ninguém menos do que Josef Stálin – o que, indiretamente, oferece uma noção do atraso da discussão – mas o essencial ficou do lado de fora.


Reportagem do O Estado de S.Paulo, do dia 06/01, ‘Diretor dribla maldição de 50 anos e embolsa prêmio’, ilustra, porém, a mudança da rota dos recursos públicos. ‘José Mojica Marins, o Zé do Caixão, nunca recebeu um centavo do governo federal para fazer algum dos seus 38 filmes, mas agora vai dispor de R$ 1 milhão; ele celebrou em churrascaria’, anunciou o jornal.


Se houve silêncio com relação a Candido Mendes, o mesmo não se pode dizer de fontes pouco conhecidas e de currículo milimétrico que surgiram no período para condimentar reportagens. A mesma Folha de S.Paulo escorregou no primeiro dia do ano em reportagem assinada por Sheila Amorim, ‘Gasto em alta acirra conservadorismo do BC’. O texto martela na tese – já adotada por todos os jornais – de que o governo federal vai extrapolar os gastos deste ano para ajudar na reeleição de Luiz Inácio Lula da Silva. Lá pelas tantas, traz a opinião da economista Sandra Utsumi, identificada como sendo do BES Investimento. ‘O Banco Central’, diz ela, ‘não sabe o impacto que esses gastos terão na economia nem o nível de atividade que o país estará vivendo neste início de ano’.


Tudo bem que havia pouquíssimas pessoas disponíveis para emitir opiniões e avaliações, mas quem é a senhora ou senhorita Sandra Utsumi? Quais são os livros que publicou ou quais trabalhos acadêmicos assina? Qual conhecimento lhe dá sustentação para avaliar o nível de desinformação do BC? A economista pode ter todos os requisitos para afirmar o que quiser, mas nada se sabe dela além de trabalhar no BES Investimento que, aliás, é parte interessada no jogo do mercado e, portanto, não totalmente insuspeita.


Dois dias depois, a mesma Folha de S.Paulo trouxe a avaliação do historiador Manolo Fiorentino, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Florentino, doutor em História da América e especializado em ‘escravidão’, segundo perfil publicado pela mesma Folha em 2000. O professor Fiorentino versou sobre o desempenho de Lula na entrevista a Pedro Bial, exibida dois dias antes no Fantástico. A breve entrevista sustenta a reportagem principal da página, ‘Para oposição, entrevista foi ‘deprimente’’. Fiorentino é a personagem central do texto ‘Na TV, Lula revelou medo, diz historiador’, no qual ele afirma que viu ‘o medo estampado nos olhos de Lula’ e discorre sobre a exibição presidencial de ‘signos de quem sabe que errou, em todos os sentidos: politicamente, eticamente e como líder’.


O jornal não traz uma linha sobre as obras escritas pelo professor – que não são poucas, é verdade, mas a maior parte delas dedicada ao período escravagista. O professor pode até mesmo ter ampliado seus estudos para a leitura dos ‘signos’ que justificaram sua entrevista, mas o leitor não é informado. 2006 promete dias difíceis para o leitor.