Para muita gente, talvez, o fato de a imprensa ter impedido que se consumasse na Câmara dos Deputados a farsa da divulgação dada como “transparente” dos gastos dos parlamentares cobertos pela verba indenizatória de até R$ 15 mil por mês merecerá apenas uma reação entre o sarcástico e o desdém, como na expressão “Que belo consolo!”, acompanhada de um dar de ombros.
Afinal, nestes dias de luto e constrangimento pelo homérico fiasco da mídia nacional no caso da afinal não-grávida e não-agredida Paula Oliveira, em Zurique, parece um nonada a vitória da imprensa, jogando em parceria com organizações civis que ladram nos calcanhares dos gastos dos governos, contra uma decisão malandra dos dirigentes da Câmara.
Sob pressão dos setores da opinião pública interessados no assunto, da cobertura e dos editoriais críticos dos diários, os políticos concluíram que não podia mais ficar como está, desde a sua adoção, em 2001, o sistema caixa-preta de prestação de contas feito para impedir que se soubesse detalhadamente como suas excelências usavam o dinheiro do contribuinte, via ressarcimento de despesas, com itens de primeira necessidade como aluguel e manutenção de escritórios de apoio nos seus Estado, viagens e deslocamentos e – essencial do essencial – “divulgação da atividade parlamentar”.
O sistema era uma esbórnia dentro da esbórnia que já é a verba indenizatória, sem falar de outras mordomias que os representantes do povo se concederam a título de bem servir os seus eleitores e o interesse coletivo. Em 2006, farejando o esquema, o Tribunal de Contas da União (TCU) levantou a lebre de uso de notas falsas de despesas com combustíveis. A maracutaia envolveria mais de 100 deputados. Envolveria porque, ao fim ao cabo, ninguém foi punido.
Na semana passada, quando se levantou a suspeita de que o deputado-castelão Edmar Moreira tinha usado em 2008 a verba indenizatória para pagar R$140 mil a uma empresa de segurança cujo dono é ele mesmo por serviços do gênero, o caldo entornou.
De conversa em conversa, os caciques da Câmara encontraram a seguinte alternativa para acalmar os indignados, mas sem desproteger a sua boa gente:
Em 45 dias, o site da Casa passará a publicar a relação mensal dos gastos por deputado, com a citação dos números, valores e do emitente das respectivas notas fiscais – sem as suas imagens dos documentos.
Mas nem esses dados desidratados se tornarão de conhecimento público quando referidos ao passado – os oito anos de verba indenizatória leve, livre e solta.
Resolveu-se ainda que as novas informações sobre as despesas indenizáveis de agora em diante não tratarão o número do CNPJ (Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica) das empresas que venderam bens ou prestaram serviços a serem pagos, em última análise, com dinheiro do contribuinte.
Sem remexer o passado, com os 45 dias de graça para cada deputado esquentar a sua papelada e sem o CNPJ, ficou claro que a alternativa era um passa-moleque, uma forma de mudar para que tudo continue como está, lembraria um colunista, citando a famosa passagem do Il Gattopardo, de Giuseppe de Lampedusa.
Mas esse foi um caso em que a cobertura da imprensa saltou do registro burocrático da esperteza para desconstruir a sua pretensa transparência. A estrutura do noticiário a respeito mostrou que repórteres e editores, tendo identificado os pontos críticos da manobra, organizaram em torno deles a cobertura da decisão.
Ah, é? Não tem CNPJ? Então, terão dito os jornalistas, vamos noticiar que, do outro lado da Praça dos Três Poderes, no Executivo, o CNPJ de cada firma aparece direitinho em cada despesa efetuada com cartão corporativo, e publicar a declaração do responsável de que assim é que se devem fazer as coisas.
O pessoal da Mesa diz que com as inovações a caixa-preta se abriu? Então vamos ouvir o que dizem as ONGs de combate à corrupção no Brasil, como Transparência Brasil e Movimento Voto Consciente. Os repórteres ouviram cobras e lagartos e não regatearam espaço para transcrevê-los.
No dia seguinte à denúncia da baixaria, os três principais diários sairam com editoriais zangados. “Longe do ideal”, concluiu a Folha. “Licença para fraudar”, rotulou O Globo. “Sob a lei de Delúbio”, disparou O Estado.
A história fecharia redonda se se pudesse dizer que esses editoriais foram decisivos para as excelências da Câmara darem o dito pelo não dito. Mas não foi assim. As edições que os traziam, na quinta-feira, 19, já estampavam também nas páginas vizinhas manchetes do tipo “Câmara recua e abrirá CNPJ de notas entregues por deputados”.
Ou porque o recuo foi tomado a desoras, quando os jornalões já não tinham como trocar os editoriais superados – superados parcialmente, porque a decisão continuou a não ser retroativa –, ou porque editorialistas e editores políticos não sabem, cada qual, o que os outros estão fazendo, o fato que conta é a incomum agilidade com que o comando da Câmara percebeu que a jogada não pegou e entregou os pontos – quase todos.
“Depois de terem tentado esconder os dados, eles agiram rápido, sentiram a barra e consertaram o malfeito anterior”, comentou o diretor-executivo da Transparência Brasil, Cláudio Weber Abramo, ouvido pelo Estado. Emendou Humberto Dantas, do Voto Consciente: “Eles começaram a perceber que a sociedade civil não nasceu ontem”.
Mas a sociedade civil – sem os altofalantes da imprensa postos à sua disposição – fica no papel limitado de interlocutor afônico dos poderes de Estado. E a imprensa, quando acha o caminho das pedras da boa causa e se calça para percorrê-las, com a colaboração dos que conhecem o seu mapa, chega ao resultado dos sonhos dos que ainda não perderam a esperança de que ela funcione como cão de guarda dos interesses da sociedade contra os poderosos da política, da administração e dos mercados.
No caso, o cão não só latiu alto e forte, mas latiu na direção certa.
Não chegou a compensar os uivos na direção errada no episódio Paula Oliveira. Mas restaurou em parte o sono perdido dos jornalistas e observadores que se levam a sério, depois do desastre de Zurique. Como gostam de dizer os americanos com filosófica resignação, “umas a gente ganha, umas a gente perde”.
E, com todos os seus mil-e-um defeitos, a imprensa brasileira ainda não se despojou da capacidade de ganhar umas – e, eventualmente, outras.
Aos leitores
O blogueiro ficará fora do ar até a primeira semana de março.