Lá vem a enxurrada! Falta pouco tempo para o início da Copa do Mundo. Na mídia, um Mundial de futebol provoca efeitos que lembram as consequências do fenômeno climático El Niño. Quem vive na América do Sul deve ter percebido que o ciclo das chuvas anda meio alterado ultimamente. Culpa, em parte, desse fenômeno provocado pelo aumento da temperatura das águas do Oceano Pacífico. O grande volume de chuva tem feito estrago em várias partes.
Nos próximos meses, semanas, dias, horas, o oceano do futebol também vai se aquecer. A Copa do Mundo está chegando, e a temperatura subirá. Nuvens pesadas se formarão nos céus midiáticos. Tempestades de informações sobre o futebol e seu entorno vão alagar os meios de comunicação e suas margens. Salve-se quem puder!
Ai de você, brasileiro! Seu país, assíduo e empolgado participante das copas, será inundado pelas águas da chuva futebolística. Em emissoras de tevê e rádio, em jornais e revistas, na internet e nos celulares, transbordarão notícias (notícias?) sobre o esquadrão (esquadrão?) que representará o país no Mundial da África do Sul.
As histórias do técnico teimoso, dos craques injustiçados, do jogador protegido pelo treinador, dos virtuosos e dos humildes que têm a chance de jogar serão contadas e repetidas à exaustão.
Quando a bola rolar, o país vibrará com cada gol marcado e lamentará os gols perdidos. Se você ficar confuso em algum momento da Copa, procure manter a tranquilidade. Os especialistas da mídia vão esclarecer suas dúvidas e elucidar os mistérios da competição.
Grandes debates serão realizados sobre toda e qualquer decisão tomada pelos árbitros, sobre os impedimentos assinalados pelos assistentes de arbitragem, sobre os esquemas táticos das equipes, sobre as escalações e alterações promovidas pelos técnicos, sobre as chances de cada seleção participante, sobre o comportamento dos atletas etc.
Entre tantos especialistas em futebol na mídia, confesso ter especial admiração por um tipo, o comentarista de arbitragem. Este, normalmente, é um ex-árbitro. Seu passado como árbitro, certamente, é controverso. Mas, depois de se ‘aposentar’ em uma carreira que não é profissionalizada – a de árbitro de futebol –, ele consegue fazer uma incrível transição no mercado de trabalho e transforma-se em comentarista de arbitragem, assumindo a função de dizer se o árbitro de uma partida tomou a decisão correta ou não em determinado lance. Isso, depois de verificar diversas vezes na tevê a repetição do tal lance.
Os comentaristas de arbitragem ocupam boa parte do tempo de uma transmissão de futebol na tevê. Afinal, como todos sabem, as multidões que acompanham o futebol em todo o mundo ligam a tevê e vão aos estádios para torcer pelos árbitros, grandes estrelas deste esporte. Sem os árbitros, o futebol não seria nada. Sem os comentaristas de arbitragem, não sei o que seria de nós.
Democracia e participação
Prepare-se, então, para o grande e verdadeiro show da democracia. A ágora será montada para a realização de acalorados debates. Um ou outro tema poderá escapar, mas a mídia dissecará a grande maioria dos assuntos relacionados ao Mundial num grande esforço de aproximação com a realidade dos fatos. Você ficará sabendo de tudo, ou quase.
E atenção! Você será convidado(a) a participar dos debates. Todos os cidadãos desse país poderão manifestar sua opinião sobre cada um dos pontos em discussão. Afinal, se o Brasil já era o país em que todos são técnicos de futebol, imagine agora, com uma cobertura mais ‘interativa’ dos meios de comunicação. Todos os técnicos do país poderão se manifestar à vontade. Não faltarão tempo nem espaço. Não deixe de interagir e contribuir com o grande momento democrático e o enorme festival de inutilidades.
No futebol, a mídia é plural. Nenhuma opinião é cerceada. Representantes de todas as tendências podem fazer uso da palavra: amantes do futebol-arte, amantes do futebol de resultados, simpatizantes do Dunga, fãs dos Ronaldos, saudosos da Copa de 82, rubro-negros, alvinegros, tricolores, alviverdes, neoliberais, anarquistas etc. Viva a liberdade de expressão!
Impedimento claro
Quando a Copa acabar e as chuvas futebolísticas se normalizarem, virá o período eleitoral. A previsão é de pancadas de chuva de informação no decorrer do período, com possibilidade de tempestades de denúncias em pontos isolados, ou melhor, sobre determinados candidatos. A pluralidade da mídia, provavelmente, já terá ido por água abaixo.
Se você estiver às margens dos rios das editorias políticas em busca de informação, fique muito atento. A água desses rios, muitas vezes, não é própria para banho ou consumo. Os perigos são grandes porque ela pode ser manipulada de modo a provocar distúrbios no seu poder de discernimento. Essa água fétida irá, no mínimo, espirrar em você e provocar irritações.
Felizmente, a Copa do Mundo não acontece todo ano. As eleições também não, mas a política é cotidiana. Um jornalista simpatizante do mercado financeiro gosta de dizer com sarcasmo que o ‘mercado vota todo dia útil’. Uma frase para sintetizar a força dos agentes financeiros e explicar que os representantes do tal mercado pressionam firmemente (para não dizer que escolhem) os governantes, valendo-se do poder econômico, da especulação financeira etc. Fazem isso diariamente enquanto o cidadão comum, aquele que vende o almoço para comprar o jantar, participa pouco da política e vota só a cada quatro anos.
E o poder econômico anda associado à mídia, à ‘grande imprensa’. Os meios de comunicação gostam de propagar que são imparciais e objetivos e que estão a serviço da coletividade. Não duvide de que a propaganda também é a alma deste negócio. Porque o quadro não é bem este. A carga ideológica presente nos rios da mídia é pesada. Os meios de comunicação produzem um conteúdo fortemente influenciado por interesses econômicos e políticos.
Se nem sempre é possível atropelar o desejo popular e empurrar goela abaixo desse povo determinados interesses, a elite trata ao menos de salvar sua pele, criando uma imensa barricada, com os meios de comunicação à frente, para não ceder nem um milímetro de terreno sequer na defesa de seus privilégios. Se a elite (e a mídia), por ventura, sorrir hoje para quem ela atacava ontem, tenha certeza de que se trata de um gesto calculado para tentar anular uma ameaça e se preservar.
Dentro dos meios de comunicação, quem diverge do pensamento dominante não tem vida fácil. Se quem discorda é jornalista, será colocado à margem, correndo o risco de, mais cedo ou mais tarde, perder o emprego. Se não é jornalista, o contestador terá dificuldade em ver sua fala reproduzida. Ele terá pouco espaço (ou nenhum) para se manifestar. Com ar de bedel, aquele conhecido comentarista de arbitragem – figura, aliás, oriunda do mercado financeiro e que passou de funcionário a parceiro do grande grupo de mídia do Brasil – teria enorme prazer em encerrar o assunto, metaforicamente, com seu bordão:
– A regra é clara. O fulano avançou e estava em impedimento. Gol bem anulado.
Tem muita gente por aí impedida de falar. Na política e na economia, a mídia não é muito democrática. As diversas tendências de pensamento político e econômico não são contempladas no dia a dia da atividade jornalística. Simplesmente, certas verdades não são ditas, certas ideias não são veiculadas.
E, na produção do conteúdo da política e da economia, diferentemente do conteúdo ‘futebolístico’, o cidadão comum não tem a mesma chance de se manifestar. Nessas áreas, tão delicadas, a mídia não te incentiva muito a interagir. É preferível que você opine menos. Porque aqui transitam aqueles que tentam persistentemente fazer sua cabeça.
Como é que eles se chamam, mesmo? Ah, sim, os formadores de opinião. A liberdade de se expressar está mais ao alcance deles. Quer dizer, a liberdade não é tão livre assim. As vozes dissonantes que se calem.
Mas não se calam, é claro. Neste momento e ao menos por enquanto, os novos canais de comunicação e as redes sociais deixam o jogo mais aberto e menos desigual. Nesse cenário, o pensamento de quem estava à margem tem alguma chance de ser transmitido. A informação que não circula lá pode circular aqui.
Como essa abertura da comunicação ainda é relativa, o melhor é não vacilar. Se você andar perto dos rios da ‘grande imprensa’, vá de máscara e boia. Não vá se afogar por aí. Procure navegar por outras bandas, beba em outras fontes de informação. Compare o que se diz de um lado e de outro. Saia da linha do impedimento e faça-se ouvir sobre os assuntos que mais importam.
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Jornalista