Ao impedir que as respectivas redações apoiassem a candidatura da democrata Kamala Harris à presidência dos Estados Unidos, os donos dos jornais Los Angeles Times e The Washington Post deflagraram duas polêmicas que influirão no futuro tanto da imprensa norte-americana, como provavelmente também na do resto do mundo ocidental.
A decisão dos bilionários Patrick Soon-Shiong, dono do LA Times, e Jeff Bezos, do The Washington Post, colocou em xeque a questão da isenção eleitoral da imprensa e abriu um tenso debate em torno da relação entre redações, comentaristas, assinantes e os gestores de empresas jornalísticas. Ambas as questões são complexas porque envolvem abordagens diferenciadas e que se tornam insolúveis caso prevaleça a opção simplificadora do ‘contra ou a favor’.
O endosso a candidaturas presidenciais é uma longa tradição na imprensa norte-americana, embora nunca tenha havido unanimidade sobre a questão. Há jornais que defendem o endosso, alegando que ele funciona como uma orientação aos leitores, seguindo a norma de que o jornalismo sabe o que é bom para as pessoas. Já os críticos do endosso alegam que ele exerce uma influência indevida na liberdade de escolha eleitoral de leitores, ouvintes, telespectadores e usuários de plataformas digitais de comunicação.
A complexidade do tema sugere que a busca de um consenso só pode ser alcançada através da análise do contexto político e econômico, em que a questão do endosso está inserida. Vetar o apoio a Kamala pode ser visto como um endosso indireto a Trump, o que está na origem da polarização dentro da imprensa norte-americana. É uma típica situação em que só a análise do contexto político pode criar condições para um eventual consenso. Para que isto aconteça é necessário um diálogo aberto e sem juízos prévios entre redações e gestores de empresas jornalísticas, condição difícil de ser alcançada no auge de uma polarização ideológica como a atual nos Estados Unidos.
A polêmica do endosso a candidaturas também colocou na agenda da mídia norte-americana um problema que raras vezes ganhou as manchetes da grande imprensa mundial. A divergência entre jornalistas e donos de empresas jornalísticas sobre a função da notícia. A maioria esmagadora dos profissionais nas redações vê a produção noticiosa como a prestação de um serviço público com função social, enquanto os gestores encaram a notícia como uma commodity negociável. A divergência se agravou com a crise no modelo de negócios da imprensa, fechamento em série de jornais, enxugamento drástico das redações e automatização na produção de notícias.
‘A democracia morre no escuro’
Este é o pano de fundo para o agravamento das tensões entre donos e funcionários em muitos jornais, o que acabou criando, no caso do LA Times e do Post, uma inédita polarização política-ideológica interna que contagiou colaboradores externos e o conjunto de assinantes.
Dezoito editorialistas do Post divulgaram uma carta qualificando como “erro terrível” a decisão de Jeff Bezos, que foi também duramente criticado por Martin Baron e Margareth Sullivan, respectivamente ex-editor-chefe e ex-colunista estrela do jornal, tidos como ícones do jornalismo liberal norte-americano. A inconformidade da redação ficou marcada no desenho da caricaturista Ann Telnaes, que publicou no Post a ilustração Democracy Dies in the Dark (A democracia morre no escuro), parafraseando o slogan criado pelo próprio Bezos, quando comprou o jornal em 2012 por US$ 250 milhões.
A rebelião contra Bezos levou 200 mil leitores do Post a cancelar assinaturas, engrossando movimento similar ocorrido em meados de outubro no Los Angeles Times e que atingiu até mesmo os meios acadêmicos. Joshua Benton, do prestigiado Nieman Lab, na Universidade Harvard, classificou como “extremamente sombrio” o quadro atual da imprensa norte-americana, num texto em que vincula o caso do LA Times e do Post às crescentes preocupações dos jornalistas em relação a uma possível vitória de Donald Trump no dia 5 de novembro.
Negócios milionários e a ideologia estariam na origem de decisões que romperam décadas de tradicional apoio a candidaturas presidenciais democratas, vistas pela imprensa norte-americana como mais favoráveis aos interesses dos grandes conglomerados midiáticos do país. Soon-Shiong estaria de olho em ajuda financeira do sucessor ou sucessora do presidente Joe Biden para amenizar as dificuldades enfrentadas pelo LA Times, terceiro maior jornal norte-americano. Já Bezos nega qualquer concessão a Trump, mas os executivos da sua empresa espacial Blue Origin se reuniram com o candidato republicano no dia seguinte à ordem de não endossar Kamala Harris. Pressionada pela perda de lucratividade, a maior parte dos grandes jornais tenta sobreviver diversificando negócios, muitos financiados por contratos com órgãos estatais.
A ‘obediência antecipada’
As decisões de Bezos e de Soon-Shiong foram seguramente tomadas levando em conta a conjuntura ultradireitista a ser criada caso o candidato republicano chegue à Casa Branca. Jon Alsop, da Columbia Journalism Review, insinuou que a atitude de ambos bilionários poderia configurar um caso típico de ‘obediência antecipada’: um recuo para evitar perdas futuras. Há o temor entre os executivos da imprensa norte-americana de que uma eventual vitória de Trump aumentará o poder das Big Techs (empresas de tecnologia) nos negócios governamentais.
Não é por acaso que o dono da plataforma digital de comunicação X (ex-Twitter), Elon Musk, se jogou de corpo e alma na campanha trumpista. Musk, que ambiciona ser o principal conselheiro econômico do político republicano, anunciou que, se escolhido, poderá cortar dois trilhões de dólares do orçamento público norte-americano, o que inevitavelmente implicará drásticos cortes nos programas sociais do país.
Mais do que a megalomania de Musk, o que tira o sono dos donos dos principais jornais norte-americanos é a possibilidade de fortalecimento do poder político dos líderes de mega conglomerados digitais como Meta (dono do Facebook e Whatsapp) e Alphabet (dono do Google e YouTube). Isto agravaria a sangria financeira da imprensa, um segmento empresarial que já foi conhecido como o ‘quarto poder’ e que hoje vê sua influência diminuir, cada vez mais, por causa de migração de anunciantes e público para as plataformas digitais de comunicação.
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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.