Duas idéias para trocar sobre os resultados da pesquisa Ibope para o Jornal Nacional sobre o referendo do desarmamento, a primeira desde que começou o período de propaganda do SIM e do NÃO da mídia eletrônica, no dia 1º de outubro.
A primeira salta à vista: a tremenda polarização entre ricos e pobres a respeito da proibição do comércio de armas de fogo no país. Quanto mais rico o entrevistado, maior a tendência a votar contra. Quanto mais pobre, maior a tendência a votar a favor.
O nível de renda é o fator singular mais importante para predizer como as pessoas votarão de amanhã a uma semana: 12 pontos de diferença nas intenções de voto (56% dos entrevistados abaixo da linha da pobreza – renda familiar de até 1 salário-mínimo –, disseram sim ao SIM; 68% dos entrevistados do topo da pirâmide – renda familiar superior a 10 salários – disseram sim ao NÃO).
Essa diferença é maior do que as que podem ser encontradas na comparação por sexo, idade, grau de instrução e região.
Em relação aos dois últimos pontos, os números são absolutamente coerentes com o fator renda: quanto mais instruído o entrevistado, maior a propensão pelo NÃO (55%); quanto mais rica a sua região (Sul), também (65%).
Reciprocamente, quanto menor a instrução, maior a inclinação pelo SIM (53%); quanto mais pobre a região (Nordeste), idem (54%).
O NÃO dos ricos é mais robusto que o SIM dos pobres
Mas atenção: entre os mais pobres o SIM ganha do NÃO por 17 pontos percentuais (56% a 39%). Já entre os mais ricos o NÃO ganha do SIM por mais do que o dobro disso: formidáveis 38 pontos (68% a 30%).
Não fosse isso, o SIM estaria na frente, pela singela razão de que há muito mais pobres do que ricos na população, no eleitorado e, portanto, nas amostras das pesquisas.
Curioso: os pobres convivem muito mais com a violência do que os ricos, mas um número maior destes do que entre aqueles parece achar que uma arma de fogo os deixará mais protegidos. Vai ver, como apontou ontem a colunista Maria Cristina Fernandes, do Valor, quanto mais rico se é, mais se tem a perder – e vice-versa. Elementar.
O medo é uma força tão poderosa que impede enxergar o óbvio. Hoje, quando o comércio de armas de fogo é permitido, os ricos vivem atrás das grades, cercados de seguranças, alarmes e o escambau, além de circular apenas em carros blindados.
Ainda assim, a criminalidade em geral e a mortandade por armas de fogo em particular só fazem crescer. O padrão, neste último caso, só mudou – pela primeira vez em 13 anos – em 2004 (últimos dados nacionais disponíveis), graças à campanha do desarmamento. O total de mortos a bala diminuiu 8% em relação a 2003.
Custa crer que os que têm mais bens a perder acham que, passando o SIM, banditismo e matanças aumentarão ainda mais.
Não há a menor base objetiva para essa crendice – embora tampouco se possa afirmar que os homicídios praticados por bandidos, com armas de fogo, diminuirão significativamente, ou diminuirão mesmo sem ser significativamente, em caso de vitória do SIM.
Não dá para garantir tampouco que o arsenal dos bandidos deixará de crescer expressivamente: não se sabe que porcentagem de revólveres e pistolas em seu poder vem de assaltos e latrocínios a cidadãos de bem. Desconfio que ela é menor do que a de armas contrabandeadas.
A propósito, levantamentos citados pelo sociólogo Leandro Piquet Carneiro, da USP, informam que a parcela de ‘domicílios armados’ no Rio é de apenas 4,5%. Em São Paulo, 2,5%.
De todo modo, se o eleitorado referendar a mudança na lei, o poder público deverá ter mais controle sobre o mercado de armas no país. Já não é sem tempo.
O que deve mudar se o SIM ganhar
A rigor, a única coisa que se pode antecipar é que – muito provavelmente – diminuirão os homicídios praticados pelos que não vivem do crime. [Mais sobre isso, amanhã.]
Não é pouca coisa. Dos quase 40 mil brasileiros e brasileiras mortos a tiros todo ano no Brasil – outro recorde mundial, além do número de vítimas em acidentes com veículos –, a maioria são pessoas comuns (não profissionais do crime), baleadas por outras pessoas comuns, ou suicidas, ou por acidente.
A segunda idéia provocada pela pesquisa do Ibope diz respeito ao resultado propriamente dito – NÃO, 49%; SIM, 45%; 6% indecisos.
Por menos que se devam comparar pesquisas feitas com metodologias diferentes, por institutos diferentes, difícil fugir à impressão de que houve em pouco tempo uma profunda reviravolta nas intenções do público – os defensores do SIM diminuíram de presumíveis 2/3 do eleitorado para menos da metade.
A explicação instantânea é que a guinada se explica pela competência da propaganda do NÃO, somada à incompetência da propaganda do SIM (tanto que o seu marqueteiro-mór foi substituído, e mudou da água para o vinho a qualidade do programa de ontem, o primeiro sob nova direção).
Agora, está dando a lógica
Mas tenho para mim que isso é apenas parte da explicação – embora talvez a mais importante.
Sendo o Brasil o que é, anômalos eram os tais 2/3 de sins. Na vantagem, agora, do NÃO, deu a lógica, como se diz no futebol. Afinal, e muita gente parece ter esquecido, esse referendo só saiu por causa da pressão da bancada da bala no Congresso: foi uma concessão dos desarmadores para conseguir que os balísticos deixassem de obstruir a votação do projeto do Estatuto do Desarmamento, afinal vitorioso.
Mas porque 67% viraram 45%? Por causa dos programas de propaganda, sim. Mas também, quem sabe, porque um tanto daquele 67% era de mentirinha. Agora, legitimado o NÃO no horário eleitoral – graças ao falacioso porém esperto argumento de que o SIM quer tirar dos cidadãos um direito sagrado, certo número de pessoas há de ter perdido a vergonha de responder “errado” e saiu do armário.
Além disso, o referendo não está imune à política: tendo ficado mais claro que o governo torce pelo SIM – o presidente Lula chegou a assinar um artigo em defesa do desarmamento na Folha de S.Paulo –, muitos dos que torcem contra o governo podem ter se decidido pelo NÃO.
Em compensação, da tucanada não se ouve um pio pelo SIM. Ao contrário, um dos seus sites, o e-agora, transcreve artigos favoráveis ao NÃO saídos na imprensa.
O avanço do SIM sobre o NÃO também deve se traduzir no fato de 12% dos entrevistados (e 16% entre os indecisos) terem dito que mudaram de opinião. Ou muito me engano, isso não acontece na mesma medida no curso de campanhas convencionais. Pelo menos, as pesquisas não costumam informar se os entrevistados mudaram de opinião sobre em quem votar. Vai ver, nem perguntam (os critérios para aferir o “voto firme” são outros).
P.S.
Por falar em pesquisas, o Estado não toma jeito. Na penúltima sondagem sobre a popularidade do presidente e a eleição de 2006, o jornal foi o único a dizer que Serra tinha ultrapassado Lula no primeiro turno por ele ter 31% e este, 30% – o que até o leitor mais distraído sabe que se chama empate técnico. Hoje, repetiu a dose.
“Prestígio de Lula ensaia recuperação”, anunciou o jornal, com base em um ibope segundo o qual a aprovação do presidente subiu de 45% para 46% entre agosto e outubro, e a parcela dos que nele confiam aumentou de 43% para 46% – numa pesquisa cuja margem de erro é de 2,2 pontos para mais ou para menos. Já a Folha e o Globo, onde parece haver mais jornalistas capazes de ler pesquisas, informaram – acertadamente – que a situação de Lula “se estabilizou”.
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