Uma pesquisa na internet, logo após a morte do pianista Arthur Moreira Lima, convida a refletir sobre o jornalismo que cobre a cultura brasileira.
Por onde andam os antológicos e indispensáveis cadernos de cultura que virariam a madrugada para entregar ao leitor o melhor conteúdo deste que foi um dos maiores artistas do Brasil?
Que o editor chamasse os jornalistas do setor, orientasse parar o que estivessem fazendo para entregar uma edição especial sobre o pianista?
Por onde anda a velha e boa reportagem?
Moreira Lima faleceu no dia 30 de outubro, aos 84 anos, em Florianópolis. O músico lutava contra um câncer no intestino. Estava internado havia duas semanas no Hospital de Caridade, na capital de Santa Catarina.
Arthur Moreira Lima foi o pianista brasileiro mais popular entre os eruditos.
Seu legado deixa claro que amava a música brasileira tanto quanto era apaixonado por Chopin.
Com raríssimas exceções, praticamente todas as matérias sobre o pianista foram escritas, em média, com seis parágrafos.
Quais critérios editoriais foram levados em consideração para dedicar tão pouco a quem tanto deixou?
Moreira Lima levou a sua arte para praças públicas, parques, ribeirinhos, universidades, festivais de inverno e de música.
Se apresentou na Rocinha, em 1991, na cidade do Rio de Janeiro, onde também tocou, em 1985, no Circo Voador, uma espécie de meca do rock brasileiro dos anos 80.
Na mesma época, no mesmo palco do Circo Voador que Moreira Lima subiu, jovens até então anônimos também se apresentaram com suas bandas em início de carreira, como Barão Vermelho, Legião Urbana, Titãs, Capital Inicial, Os Paralamas do Sucesso e Kid Abelha, entre outros.
Portanto, na prática, não seria exagero afirmar que Moreira Lima também foi um artista popular pela abrangência de público que atingiu.
O pianista gravou e tocou com Elomar e Xangai, acompanhado por Paulo Moura. Além de apaixonado, pesquisava a música brasileira, o folclore, o samba, o choro, as canções nordestinas.
Para a abertura do programa “Um Toque de Classe”, que estreou em 1985, na TV Manchete, Moreira Lima escolheu como trilha um dos trechos mais conhecidos da Polonaise Heroica, de Chopin, seu compositor clássico preferido.
Logo na chamada, ficava evidente que viria conteúdo de qualidade a seguir. Na atração, o pianista recebia e conversava sobre música com convidados que fizeram e ainda fazem história na música brasileira.
Além de tocar, Moreira Lima, na época com 39 anos de idade, entrevistou Nelson Gonçalves, Tom Jobim, Moreira da Silva, João Nogueira, Nelson Gonçalves, Raphael Rabelo, Milton Nascimento e Radamés Gnattali.
Com Ney Matogrosso, o pianista fez um dos mais belos e inesquecíveis shows, “Pescador de Pérolas” (1987). Eram acompanhados por Paulo Moura, na clarineta, Raphael Rabello, no violão e Chacal, na percussão.
Moreira Lima foi a personificação do verso de Milton Nascimento (Bailes da Vida) de que todo artista tem de ir aonde o povo está.
O pianista percorreu mais de 500 cidades do Brasil com o projeto “Um Piano pela Estrada”, de sua autoria, levando músicas clássica e popular de graça para moradores de lugares isolados e de baixa renda.
Em um caminhão-teatro, que transportava os pianos e se transformava em um palco de 45m² de cena, Moreira Lima tocava Beethoven, Mozart, Chopin, Astor Piazzolla, Villa Lobos, Ernesto Nazareth, Pixinguinha e Luiz Gonzaga.
Gravou canções compostas por Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque, Dorival Caymmi, Roberto e Erasmo Carlos.
Enfim, se fosse atleta de futebol do seu time do coração, o Fluminense, o craque e carioca Moreira Lima teria jogado em todas as posições, no gol e ainda seria o técnico do tricolor.
Ativista político, em 1985 Moreira Lima já falava sobre o individualismo da esquerda brasileira e na união da direita em prol do status quo, da manutenção do poder e dos privilégios. A análise, que cabe perfeitamente para os tempos atuais, foi feita há 39 anos para o programa “Eu Sou o Show”, produzido e levado ao ar pela TVE do Rio de Janeiro.
Cabe outro registro. O pianista, que por pouco não virou pé de página após morrer, sempre atendeu bem jornalistas e apresentadores de programas. Ele sabia da importância do rádio e da televisão para o público conhecer e ter acesso à música clássica.
Quando um artista da magnitude de Arthur Moreira Lima nos deixa e não informamos de quem se trata, Alguma coisa / Está fora da ordem, como diria Caetano Veloso.
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Paulo Renato Coelho Netto é jornalista, pós-graduado em Marketing. Tem reportagens publicadas nas Revistas Piauí, Época e Veja digital; nos sites Uol/Piauí/Folha de S.Paulo, O Globo, Claudia/Abril, Observatório da Imprensa e Vice Brasil. Foi repórter nos jornais Gazeta Mercantil e Diário do Grande ABC. É autor de sete livros, entre os quais biografias e “2020 O Ano Que Não Existiu – A Pandemia de verde e amarelo”.