Com mais de cinco mil rádios comunitárias em operação, o Brasil vive uma realidade na qual essas emissoras desempenham um papel crucial na democratização das comunicações. No entanto, parte do seu potencial como instrumento de comunicação popular e de serviço público tem sido frequentemente apropriado por interesses políticos locais. Essa realidade foi abordada em 2007 no estudo “Rádios comunitárias: coronelismo eletrônico de novo tipo (1999-2004)”, publicado neste Observatório da Imprensa e conduzido pelo professor Venício A. de Lima e por mim. A pesquisa, uma iniciativa do Projor – Instituto Para o Desenvolvimento do Jornalismo com apoio da Fundação Ford, revelou que entre 2.205 rádios pesquisadas, 1.106 – ou 50,2% – possuíam vínculos políticos diretos. O estudo completo está disponível em https://www.observatoriodaimprensa.com.br/interesse-publico/o-coronelismo-eletronico-de-novo-tipo-19992004/
Dando continuidade a essa linha de pesquisa, escrevi um novo artigo intitulado Unveiling the Political Influence in Brazil’s Community Radio Licensing: An Empirical Study (Revelando a Influência Política na Outorga de Rádios Comunitárias no Brasil: Um Estudo Empírico), publicado recentemente no periódico Communication Law and Policy. Este novo estudo amplia a análise, cobrindo o período de 1999 a 2018, e aprofunda o entendimento dos mecanismos de influência política na concessão dessas outorgas. A investigação recorreu a uma vasta base de dados obtida por meio de um antigo sistema eletrônico do Ministério das Comunicações que, por uma falha interna da pasta, permitiu acesso a milhares de documentos sobre a política pública de outorga de rádios comunitárias. Esses documentos incluíam ofícios e solicitações de apoio enviados por parlamentares, revelando ações de pressão política para a liberação de licenças, evidência que corrobora a existência de práticas clientelistas no setor.
Essa nova pesquisa oferece uma leitura atualizada e aprofundada sobre como o sistema de outorga de rádios comunitárias no Brasil continua sendo influenciado pelo “coronelismo eletrônico de novo tipo”. Disponível na íntegra neste link, o estudo alerta para a necessidade urgente de reformas que garantam transparência e independência no setor, assegurando que as rádios comunitárias sejam, de fato, vozes autônomas das comunidades por elas representadas.
O artigo revela ainda que, apesar da existência de regras objetivas para obtenção de licenças de funcionamento, parlamentares têm desempenhado um papel essencial na facilitação desses processos ao atuarem como assessores informais para o cumprimento das muitas exigências burocráticas envolvidas. Analisando 17.422 processos de outorga, a pesquisa mostra que a presença de apoio parlamentar aumenta em 2,14 vezes a chance de uma licença ser aprovada. Esse dado expõe como figuras públicas influenciam a distribuição de concessões, transformando o sistema em uma via de troca de favores, no qual parlamentares “apadrinham” rádios que podem favorecer suas bases eleitorais.
Além disso, o estudo identificou que, dependendo do governo em exercício, o apadrinhamento por políticos é um fator mais ou menos influente para o sucesso de um pedido de outorga de radiodifusão comunitária. Por exemplo, durante os governos FHC e Lula 1 e 2, o apoio parlamentar teve um grande peso nas decisões, enquanto no governo Dilma Rousseff o efeito do apoio político foi pouco relevante. A influência do contexto governamental ressalta o quão sensível e adaptável é o sistema de concessão às pressões políticas e aos jogos regionais de poder.
Essas práticas clientelistas no processo de outorga de rádios comunitárias trazem consequências diretas para a democratização da comunicação no Brasil, onde movimentos comunitários genuínos são frequentemente preteridos. O modelo atual, em vez de promover o acesso equitativo a um recurso público, concentra concessões nas mãos de aliados políticos, limitando a diversidade de vozes e o potencial transformador dessas rádios. A prática remete a uma lógica de apropriação de bens públicos por grupos específicos, dificultando a emancipação das rádios comunitárias como canais das comunidades e para as comunidades. Além disso, muitas dessas rádios são frequentemente instrumentalizadas em campanhas eleitorais municipais, desequilibrando os pleitos ao favorecer candidatos com mais acesso a esses veículos de comunicação.
A literatura de comunicação e política vem demonstrado como a radiodifusão comunitária, em todo o mundo, representa um poderoso instrumento para a democratização das comunicações e o livre fluxo de ideias, oferecendo um espaço no qual vozes plurais possam se fazer ouvir. No entanto, o processo de outorga no Brasil tem historicamente aprisionado essas rádios a interesses políticos, distanciando-as de sua vocação essencial de serem genuínas representantes das comunidades. Simplificar o processo de concessão poderia, enfim, reduzir as práticas clientelistas e abrir caminho para que até as entidades comunitárias mais humildes, que não contam com conexões políticas influentes, consigam licenças de radiodifusão. Somente por meio de uma regulamentação que privilegie a transparência e a equidade poderemos fortalecer a radiodifusão comunitária como uma arena de expressão verdadeiramente livre e inclusiva, na qual o interesse público prevaleça sobre os interesses privados. Que se preservem, assim, os valores e as essências dessas emissoras, permitindo a elas servir ao seu propósito fundamental: unir e representar as diversas vozes do Brasil em um espaço de comunicação acessível a todos, garantindo o florescimento da democracia e do direito à informação em cada canto deste País.
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Cristiano Aguiar Lopes é jornalista, doutor em Ciência Política pelo IESP-UERJ e Consultor Legislativo da Câmara dos Deputados.