15 de dezembro de 2024. Ainda cedo, vejo no WhatsApp a mensagem do jornalista Maranhão Viegas. “Lendo o teu texto de ontem, me deu vontade de compartilhar contigo este documentário que fiz para a TV Brasil e que rendeu um prêmio nacional de sustentabilidade, em plena pandemia. Embaixo do texto que explica a produção há o link para o documentário completo. Grande abraço e bom domingo”.
Maranhão se referia ao artigo “Cora Coralina e o essencial para viver” que publiquei no dia anterior no site chumbogordo.com.br, criado por Carlinhos Brickmann (1944-2022), mantido e editado por ele e a jornalista Marli Gonçalves. Carlinhos Brickmann e Marli Gonçalves, assim como a Maranhão Viegas, jornalistas brasileiros dos quais me orgulho poder chamar de amigos. Todos presentes. Marli em São Paulo. Maranhão em Brasília e Carlinhos na memória e no coração.
Leitor voraz, apaixonado por música e profundo conhecedor de artes, Brickmann teria adorado o documentário sobre Cora Coralina de Maranhão Viegas. Sobre Carlinhos Brickmann, Marli Gonçalves escreveu: “Ensinou muitos. Deu a mão a outros tantos, solidário. Confiou e empurrou para a frente jovens talentos que sabia reconhecer – muitos destes alçaram voos seguros para a fama, essa senhora egoísta à qual ele mesmo, Carlinhos, como era chamado esse desajeitado de mais de cem quilos, quase dois metros de altura, nunca deu bola. Mauricio de Sousa, com quem trabalhou na Folha da Tarde, deu ao simpático elefante de suas histórias que começavam a fazer sucesso o seu nome do meio: Ernani”.
Elaborado com extrema delicadeza, em “Caminhos da Reportagem – No rastro da poesia. No Caminho de Cora”, Maranhão Viegas aborda diversos temas. É o único caminho de poesia do mundo, em homenagem à poeta que escreveu: “O que vale na vida não é o ponto de partida e sim a caminhada. Caminhando e semeando, no fim terás o que colher”.
São 300 quilômetros de trilha, com início na cidade de Corumbá de Goiás até a casa da poeta, na cidade de Goiás. Passa por oito cidades e povoados, com mais de 40 pontos de apoio e três unidades de conservação do Estado. Ao longo de todo percurso, poemas de Cora Coralina são expostos em placas. Uma estrada sinalizada com poesia.
A geografia do cerrado brasileiro percorre o documentário do início ao fim, bioma rico em nascentes de águas cristalinas que, a cada ano, é noticiado por recordes de desmatamento, focos de incêndio e comemorado pelo agronegócio como celeiro de plantação de soja, pasto para engorda de boi e plantação de eucaliptos.
No filme de Maranhão Viegas, vegetação, cachoeiras, riachos e ipês de todas as cores. Pássaros, muitos pássaros, raros e preservados da extinção. Um documentário ecológico isento da bílis que geralmente permeia o universo ambientalista. Tudo no filme é coberto de delicadeza e profissionalismo. As imagens, a trilha sonora, o roteiro claramente feito sob pesquisas detalhadas, a construção da história que deságua, literalmente, na intimidade da casa da poeta, às margens do Rio Vermelho.
O que chama a atenção, ponto que deveria ser estudado nas escolas de jornalismo, é a ausência de personalismo no trabalho. Subvertendo a estética dos documentários das televisões, nos quais o repórter quase sempre se coloca no centro da história, como se fosse mais importante que a pauta, Maranhão Viegas aparece apenas pontualmente. A elegância discreta citada na canção Sampa de Caetano Veloso.
Certamente sem querer, já que não é o estilo de Maranhão Viegas causar polêmicas, levantar bandeiras ou ser didático, mostra que qualquer história bem contada não precisa do narcisismo do jornalista. Aquele ou aquela repórter que voa no balão para mostrar a paisagem, que faz a passagem pendurada na corda com a caverna em segundo plano ou que mergulha nos corais para se incluir no cenário marinho. Aquele que, no lugar de mostrar a feira exótica, usa o tempo para aparecer comendo espetinho de gafanhoto.
Ao longo dos 300 quilômetros percorridos, o documentário mostra o potencial turístico do interior de Goiás, a geografia, a história, a culinária, a importância da trilha para a diversificação da economia, e até mesmo como o Caminho de Cora Coralina tirou do isolamento social as famílias que moram na região e que agora dividem o cotidiano com os turistas.
O documentário coloca a poesia no epicentro do roteiro. O filme é sobre poesia. A poesia das casas e monumentos históricos do interior de Goiás. É sobre a poesia do doceiro que preserva a cultura na arte culinária e se emociona com o que faz e com a obra da poeta. É sobre a poesia dos galos que compartilham a existência com os moradores isolados dos sítios, gente que exala simplicidade pelo modo de viver em suas casas bem cuidadas. Moradias como a de Cora Coralina, na Casa da Ponte, hoje convertida em museu. Casas que ainda conservam tachos de cobre, filtro de barro, camas simples e mesas de madeira maciça.
Composta por Maurício Tapajós e Aldir Blanc e interpretada magistralmente por Elis Regina, a canção “Querelas do Brasil”, logo no primeiro verso aponta que “O Brazil não conhece o Brasil”. O documentário de Maranhão Viegas é uma excelente oportunidade para entender, conhecer e sentir melhor o país que vivemos.
Existência assim definida por Cora Coralina: “Estou vivendo o melhor tempo da minha vida – tempo de paz, de tranquilidade, de certezas. Tempo em que não tenho nada e nada me falta. E não quero ter mais do que isso que você vê. Tudo isso me basta com sobra”.
Serviço:
“Caminhos da Reportagem”
No rastro da poesia. No Caminho de Cora
https://www.youtube.com/watch?v=72sO4ouJAXI
Caminho de Cora Coralina
https://caminhodecoracoralina.com.br
Museu Cora Coralina
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Paulo Renato Coelho Netto é jornalista, pós-graduado em Marketing. Tem reportagens publicadas nas Revistas Piauí, Época e Veja digital; nos sites UOL/Piauí/Folha de S.Paulo, O GLOBO, CLAUDIA/Abril, Observatório da Imprensa e VICE Brasil. Foi repórter nos jornais Gazeta Mercantil e Diário do Grande ABC. É autor de sete livros, entre os quais biografias e “2020 O Ano Que Não Existiu – A Pandemia de verde e amarelo”.