A promoção da transparência pública, resultado do provimento de informações de interesse público, atualizadas e de qualidade, é considerada um dos fundamentos e pilares das democracias representativas contemporâneas, sem a qual não é possível acompanhar as ações governamentais ou participar da tomada de decisão pública. É a divulgação de informações precisas, relevantes e atuais sobre as contas públicas, as políticas e recursos públicos que permite que os cidadãos fiscalizem e monitorem ações governamentais, formulem opiniões e atuem de maneira mais participativa na esfera pública.
A transparência, entretanto, não se restringe apenas à divulgação de informações públicas, mas de informações úteis, compreensíveis, que permitem a supervisão e a avaliação do objeto em questão: seja ele um órgão estatal, uma empresa pública, um ator político, servidores públicos, entre outros.
No que diz respeito ao contexto brasileiro, o país conta com previsões legais e marcos normativos que asseguram o provimento de informações claras e completas sobre o funcionamento do governo e suas instituições, bem como as atividades e tomadas de decisões dos parlamentares. Os órgãos públicos devem oferecer informações com qualidade assegurada por meio da transparência passiva e ativa, em seus portais ou por meio de pedidos de acesso à informação. Trata-se da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei complementar 101, conhecida como LRF, de 2000) [1], da Lei da Transparência (Lei Complementar 131, de 2009) [2], e, por fim, da Lei de Acesso à Informação (Lei Complementar 12.527, conhecida como LAI, de 2011) [3], que destaca o uso da internet como forma de dar ampla divulgação de informações [4].
A segunda década dos anos 2000 foi marcada pelo foco do debate e produção de pesquisas acadêmicas sobre as recém aprovadas FOIAs (Freedom of Information Acts) pelo mundo e sobre como governos poderiam ser mais transparentes, colaborativos e participativos por meio de iniciativas digitais fomentadas, por exemplo, pelo movimento Open Government Partnership, que surgiu em 2011, reúne hoje mais de 75 países [5] e desenvolveu um grupo de trabalho voltado especificamente à transparência legislativa. Àquela ocasião, o desafio da transparência pública versava, portanto, sobre a abertura de dados públicos e a promulgação de legislações que tornassem a transparência a regra e o sigilo, a exceção – o que, no Brasil, está previsto na LAI (2011). Aproximando-se de 2020, os desafios postos à administração pública e à transparência pública passaram a ser outros. Chamamos aqui a atenção para alguns deles:
(i) Como lidar com o grande volume de dados coletados hoje por plataformas e governos. O excesso de informação produzida traz consequências importantes. As redes de comunicação digital, especialmente as redes sociais digitais, têm capacidade de disseminação, velocidade e alcance sem precedentes. A chamada infodemia, termo usado pela Organização Mundial da Saúde durante a pandemia da Covid-19, típica de momentos emergenciais e tragédias, é caracterizada pelo aumento excessivo no volume e circulação de informações, corretas ou não, sobre um tema específico e pode: (1) atrapalhar a confiança nas organizações oficiais; (2) gerar dissonância cognitiva, caracterizada pela dificuldade de identificar as informações verdadeiras; (2) atrasar o processo de tomada de decisão dos governos, profissionais e população em momentos de crise;
(ii) Governos de todos os níveis estão entre os maiores produtores de dados e muitos desses dados são abertos e estão disponíveis aos cidadãos e a quaisquer interessados por meio de iniciativas de dados abertos e resguardados pelo princípio da transparência pública. Todavia, entre os benefícios associados à abertura de dados públicos residem, ainda, os riscos de exposição e compartilhamento de dados pessoais dos cidadãos, além disso, vimos em muitos casos a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) ser usada como prerrogativa por órgãos públicos quando estes decidem não divulgar dados e informações que lhes foram solicitados. É preciso refletir se há e quais são as tensões e complementaridades entre a promoção da transparência pública e a proteção de dados pessoais, assegurada pela LGPD;
(iii) Tecnologias de IA possibilitam o processamento de grandes volumes de dados em tempo real, auxiliando a administração pública a tomar decisões informadas e também a personalizar a prestação de serviços para diferentes segmentos da população. Em países como o Brasil, isso pode significar a democratização do acesso a serviços públicos, reduzindo as barreiras impostas por fatores geográficos e socioeconômicos [6]. É fundamental, portanto, questionar como usar a IA para que ela sirva de instrumento para aumentar a transparência e a acessibilidade das informações governamentais, tornando a administração pública mais eficaz e os governos e Estados mais transparentes para a sociedade;
(iv) Se, por um lado, os recursos digitais passaram a exercer papel ainda mais ativo no jogo político e a se configurar como ferramentas que contribuíram para o aumento da transparência pública, por outro lado, a contemporaneidade e as dinâmicas destes ambientes passaram a ter que lidar também com a rápida disseminação de narrativas fraudulentas (fake news) e discursos de ódio, de modo que agora faz-se tão importante quanto necessário lançar luz sobre dados e informações que elucidem a qualidade do debate público, que acontece nas plataformas de redes sociais. Garantir a abertura e o acesso a dados e informações sobre a saúde do ambiente digital, bem como compreender como acontece a circulação das informações são aspectos imprescindíveis para a produção de pesquisas e conhecimento sobre o debate público.
Desse modo, pode-se perceber que a transparência, sobretudo a partir do uso mais amplo do ambiente online para sua promoção, abrange novas práticas e, consequentemente, desafios que extrapolam sua definição inicial. Isso significa dizer que, em breve, será inadiável repensar a legislação que a regula, que tem se mostrado em alguns casos insuficiente para lidar com questões específicas, como a algoritmização da circulação de informação e a proteção de dados, a fim de que esse valor democrático siga contribuindo para a fiscalização das práticas e a credibilidade desse regime.
Notas
[1] BRASIL. Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp101.htm. Acesso em: 18 set. 2024.
[2] BRASIL. Lei Complementar nº 131, de 27 de maio de 2009. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp131.htm. Acesso em: 18 set. 2024.
[3] BRASIL. Lei Complementar n. 12.527, de 18 de novembro de 2011. 2011. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm Acesso em: 18 set. 2024.
[4] A transparência passiva, que acontece via pedidos de acesso às informações, está prevista na LAI, enquanto a ativa se dá por meio da divulgação de dados em portais governamentais em tempo real, sem necessitar da demanda dos cidadãos, prevista na LRF e na Lei da Transparência.
[5] Open Government Partnership. Disponível em: https://www.opengovpartnership.org/about/ Acesso em 19 set. 2024
[6] Mendonça, R. F.; Filgueiras, F. ; Almeida, V. . Algorithmic Institutionalism: the changing rules of social and political life. 1. ed. Oxford: Oxford University Press, 2023. v. 1. 191p.
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Maria Paula Almada é pesquisadora em estágio de pós-doutorado no INCT.DD (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital), coordenadora do GT Governo e Parlamento Digital da Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e Política (Compolítica).
Isabele Mitozo é professora do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais, vice-coordenadora do GT Governo e Parlamento Digital da Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e Política (Compolítica).