Friday, 10 de January de 2025 ISSN 1519-7670 - Ano 25 - nº 1320

Brasil continua em débito com muitas outras famílias, inclusive as de Marighela e Lamarca

Eunice Paiva e Zuzu Angel tiveram eternizadas nas telas as suas corajosas lutas por entes queridos que foram exterminados pela ditadura dos generais. 

Merecem o respeito e gratidão dos melhores brasileiros, assim como todas as famílias que passaram por dramas semelhantes, durante a imensa tragédia do totalitarismo que se abateu sobre nosso país no período 1964-1985.

Nunca deixarei de lamentar quão pouco pude fazer por três dessas famílias.

Como a do meu colega desde o primário e companheiro de lutas desde o movimento secundarista, Eremias Delizoicov.

Quando terminou minha temporada no inferno e voltei em frangalhos às ruas, duas vezes encontrei seu pai no ponto de ônibus. Em ambas ele quis (praticamente me obrigou) que fosse à sua casa, para ajudar a alimentar as esperanças de que o Eremias ainda estivesse vivo, foragido pelo mundo.

Tudo isto porque a repressão anunciou inicialmente a morte de outro companheiro e só um ou dois dias depois retificou a informação. Como os verdugos se negaram inclusive a entregar ao sr. Jorge os restos mortais do filho (provavelmente para evitar que constatasse as dezenas de disparos com os quais estraçalharam seu corpo, uma bestialidade a mais dentre tantas que cometeram), o sr. Jorge e a esposa continuavam sonhando com um impossível happy end.

Naquelas duas tardes em que passei horas na casa deles, resisti à tentação de simplesmente dizer-lhes o que queriam escutar. Aconselhei-os a esquecerem tal ilusão e buscarem a felicidade possível no que restara da família: eles dois e o filho mais velho, que não participou da luta.

Então, lembro-me dessas ocasiões como um interminável sofrimento a três, do qual eu tinha a obrigação de participar até poder ir-me embora, arrasado, para voltar a juntar os cacos da minha própria existência.

Como a família do Massafumi Yoshinaga, que eu nem sequer conhecia (mas um tio dele me contatou no final de 2005, quando eu estava lançando o Náufrago da Utopia).

Foi então que tomei conhecimento de quanto o Massa & família sofreram com a estigmatização por parte de pessoas de esquerda mais rápidas em condenar as vítimas do terrorismo de Estado do que em lutarem contra ele quando tiveram a oportunidade de fazê-lo.

Percebi que o tio Akitoshi queria de mim uma espécie de desagravo e isto, pelo menos, estava ao meu alcance. Divulguei vários artigos deplorando o abandono ao Massa quando ele decidiu sair da organização e foi largado no mundo sem grana, sem ajuda nenhuma para deixar o país, sem ter sequer onde esconder-se (chegava a dormir nas barracas do Mercado Municipal!), depois de haver se tornado procuradíssimo pela repressão graças à sua atuação na VPR.

Era desesperadora sua situação quando aceitou o conselho de um antigo guru, que intermediou sua rendição ao Dops, com a garantia de não ser torturado. Teria de participar de showzinhos montados pelos serviços de guerra psicológica das Forças Armadas, sendo solto logo em seguida, mas não para reencontrar, como sonhava, o calor do povo, e sim para viver execrado em seu próprio país, a ponto de enlouquecer (tinha alucinações de que seus pensamentos estariam sendo captados pela repressão) e de tentar três vezes o suicídio, até obter sucesso!

Fiz o máximo que pude, com meu teclado, para que ele passasse a ser visto com um pouco de compreensão, como mais um jovem destruído pelo arbítrio então vigente no Brasil. E me orgulho de haver rebatido firmemente o uso calhorda de sua desgraça por um antigo companheiro de movimento secundarista, depois economista burguês (um dos pais do Plano Cruzado).

Num momento em que estava praticamente esquecido em sua profissão, tal indivíduo divulgou um artigo choramingas numa revista chique, não se vexando de atacar a memória de um morto para valorizar a dele própria. Desafiei-o para uma polêmica, mas ele preferiu ignorar. Refutei o artigo, mas a revista não concedeu direito de resposta. De qualquer forma, impedi que tal baixeza passasse inteiramente em branco.

Por último, indignei-me ao perceber que as viúvas da ditadura, com o apoio da imprensa canalha, lançavam uma ofensiva avassaladora contra a correta decisão da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, de fornecer uma reparação à altura do sacrifício do comandante Carlos Lamarca, executado por agentes do Estado brasileiro quando estava rendido e combalido.

Também dessa vez pude somar minhas forças à da família que travava luta tão desigual, pouco apoio recebendo dos antigos companheiros do Lamarca. Cumpri integralmente o meu dever de solidariedade para com o combatente tombado.

De resto, não é só o reconhecimento dos pósteros a partir de filmes e livros que as famílias dos companheiros merecem, mas também o reconhecimento do próprio Estado brasileiro, que insiste em não colocar Carlos Marighella e Carlos Lamarca como dois dos maiores heróis que este país já produziu.

É ultrajante que eles não tenham seus nomes acrescentados às mais de 60 figuras históricas que já constam do Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria. Trata-se de outra dívida que a nação brasileira tem para com as famílias daqueles que mais a honraram com suas ações e com o sacrifício de suas vidas.

E que não será paga de maneira branda, agora que a direita manda e desmanda no Congresso Nacional. Mas, se evitarmos todas as batalhas difíceis de vencermos, perderemos a guerra de forma cada vez mais acachapante, como vem acontecendo desde 2016.

Artigo originalmente publicado aqui.

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Celso Lungaretti é jornalista, escritor e anistiado político, foi comandante de Inteligência da VPR em 1969/70.