“O furo de reportagem, dentro dos limites éticos da profissão, é a meta de todo bom jornalista”, teorizou o Jornal Nacional para justificar a equívoca relação entre o repórter da Rede Globo César Tralli no episódio da prisão de Flávio Maluf [ver abaixo a nota “Polícia é polícia, bandido é bandido – e jornalista devia ser jornalista”, de 11/9.]
Eis precisamente o ponto – os limites éticos da profissão.
Esses limites não se tornam mais elásticos pelo fato de um jornalista cobrir seja lá o que for há mais de cinco anos, como o JN informou ser o caso de Tralli em relação aos Maluf, “com a competência que tem demonstrado em sua carreira”
Obstinação e competência são virtudes inestimáveis no jornalismo. Os obstinados e competentes de fato não se importam, como elogiou a Globo, de “passar madrugadas em claro, vasculhar documentos durante meses e descobrir testemunhas.
Mas isso — se verdadeira a descrição da conduta de Tralli, na Folha de ontem e de hoje — não legitima o que tudo indica ser um caso de transgressão ética: a participação voluntária em um evento de mídia armado pela Polícia Federal.
A expressão media event é americana. Designa situações construídas por interessados suficientemente poderosos para tal, com a intenção de se promover perante a opinião pública.
Media event, hoje em dia e em qualquer lugar, é um evento para a televisão, antes de tudo. No Brasil, para a Rede Globo, antes de tudo. Porque, parafraseando com alguma licença um velho slogan da desaparecida Gazeta Esportiva, “se a Globo não deu, ninguém sabe que aconteceu”.
Para subir no conceito popular, nestes tempos em que a política virou caso de polícia, nada mais previsível do que a Polícia Federal armar o seu circo para a Rede Globo mostrar aos brasileiros um Maluf algemado.
Insuspeitos de simpatias pelo clã já dissemos que não havia nenhuma das circunstâncias previstas em lei para a execração de quem decerto merece, não isso, mas penas à altura dos delitos cujas evidências nem mais faltam falar.
Mas uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. A primeira é uma overdose de mostrar serviço, que o ministro da Justiça Marcio Thomaz Bastos, que entende disso muito bem, precisa coibir. Lugar de delinquente é na cadeia, depois do devido processo legal. Não é na televisão.
Preso para ser filmado, algemado – pela Globo
A outra coisa é um jornalista usar boné de tira, óculos escuros de tira, blusão de tira, e viajar em carro de tira para fazer a sua parte no espetáculo. A tal ponto que o preso e o seu advogado imaginaram que Tralli era um agente da lei, não um agente da informação.
Pelo que se divulgou, falta menos do que um fio de cabelo para provar que Flávio Maluf foi preso duas horas antes do prazo em que teria ficado certo que se apresentaria, apenas para ser filmado usando algemas, pela Globo.
Da Folha: “No momento em que Flávio foi algemado, na manhã de sábado, o jornalista da TV Globo César Tralli filmava a cena.”
Só ele, ninguém mais: vai ver todos os pauteiros e todo o reportariado das outras redes tinham esquecido que uma juíza federal havia mandado prender Maluf père et fils e o que o primeiro já tinha entrado em cana.
Vai ver a Polícia Federal esqueceu de avisar o resto das emissoras de que resolvera não esperar, mas ir buscar o filho do doutor Paulo na fazenda dele (de onde voou a São Paulo co-pilotando o helicóptero da PF).
Do Estadão: “Tralli não só filmou a operação, entrou no carro dos policiais e ainda falou com Flávio, a pedido de seu advogado.”
O repórter vestiu o que vestiu e fez o que fez. Pior foi a Globo: diante dos protestos do patrono do acusado e da decisão do diretor-geral da PF de ordenar uma sindicância para apurar se os subordinados agiram certo ou errado, a emissora devia, isso sim, revelar os bastidores do furo e explicar as atitudes do seu jornalista.
Os globais não vivem cobrando transparência de deus-e-todo-mundo?
Em vez disso, a Rede saiu com um trololó sobre as qualidades do seu repórter, com a informação sensacional e inédita de que no Brasil “a liberdade de imprensa é um garantia constitucional”.
Fica difícil discordar do leitor do Verbo Solto que se assina Christian e se identifica como estudante. Comentando o meu primeiro texto sobre o assunto, ele escreveu: “Usaram a ética protestante do trabalho para justificar a completa falta de ética jornalística.”
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