Um exemplo ilustrativo. Se hoje uma associação de bairro deseja montar uma rádio comunitária, ela tem se adequar a uma série de normas limitantes (que dificultam ao máximo a regularização), entrar com um pedido de autorização no Ministério de Comunicação e entrar na fila dos mais de 7000 processos que já estão lá. O governo diz que só tem condições de analisar 1500 processos por ano, o que significa que, se tudo der certo, até o final de 2009 o pedido será analisado. Enquanto isso, as rádios estão sob ameaça de fechamento pela Anatel ou pela Polícia Federal. Para se ter uma idéia, desde 1998, quando foi promulgada a lei de radiodifusão comunitária, foram licenciadas 2.199 rádios comunitárias. Enquanto isso, só em dois desses anos, 2002 e 2003, foram fechadas 7.612 rádios. A prática da comunicação, que deveria ser um direito, é hoje um delito para boa parte dos brasileiros.
Foi pensando em atuar sobre esse tipo de questão que cerca de 40 entidades resolveram trabalhar na criação da Cris Brasil. Essa articulação nasce para incidir em diversos campos da área das comunicações, desde a concentração da mídia até a apropriação social das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), passando pela defesa e incentivo da diversidade cultural e da busca por medidas de flexibilização da propriedade intelectual que favoreçam a socialização do conhecimento. Na pauta, a luta por políticas públicas e pela sensibilização da sociedade brasileira para esse tema.
A proposta não é reinventar a roda, nem oferecer soluções ‘originais’ para questões que já acometem o Brasil há anos. Essa nova articulação bebe na fonte dos movimentos que já se organizam desde as décadas de 70 e 80, como o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) ou as diversas entidades que articulam as rádios comunitárias, e daquelas surgidas no bojo das novas tecnologias, como os movimentos por inclusão digital ou em defesa do software livre. Então por que uma outra iniciativa?
Em primeiro lugar, porque só é possível interferir no quadro absolutamente desigual da comunicação brasileira se a sociedade civil buscar estratégias conjuntas, na definição de uma agenda comum entre os diversos movimentos. É necessário construir uma agenda própria (não apenas reativa à agenda governamental) que consiga identificar quais os elementos comuns em meio a tantas especificidades.
Em segundo lugar, porque a convergência de mídias torna cada vez mais anacrônica a fragmentação das lutas. É preciso aglutinar os setores que lidam com a luta pela pluralidade e diversidade na mídia, os que buscam o direito de apropriação das Tecnologias de Informação e Comunicação, os que defendem os direitos das rádios comunitárias, os que se organizam pelo software livre, os que reivindicam um sistema de propriedade intelectual que favoreça a socialização do conhecimento e os que batalham por diversidade cultural. Sempre respeitando as especificidades, mas sempre reconhecendo os objetivos comuns.
Em âmbito global
A Campanha Cris (Communication Rights in the Information Society) [cujo endereço eletrônico encontra-se na área de Links Relacionados, ao lado] surgiu internacionalmente a partir de um conjunto de ONGs e movimentos que já lutavam pela democratização da Comunicação. Redes globais e regionais como a APC, a ALAI, a GlobalCN, entidades como a WACC, a AMARC, a ALER e a Nexus se juntaram para estabelecer um campo de luta comum. São atores de todo o mundo, dos cinco continentes, com focos de atuação diversos dentro do mesmo campo. Como campanha, não há uma relação de ‘solidariedade’ (e portanto de superioridade implícita) entre países do Norte e do Sul. Há o reconhecimento de uma luta comum em torno de objetivos comuns.
O gancho para a criação da Campanha Cris foi a proposta de uma articulação internacional para interferir nos rumos da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação (CMSI), realizada pelas Nações Unidas. A CMSI teve sua primeira fase no final de 2003 e terá seu segundo momento no final de 2005. A Cúpula, no entanto, acabou sendo um pretexto para a organização de uma campanha com objetivos mais amplos e duradouros.
No Brasil, mais do que uma campanha, ela se configura como uma articulação de entidades, redes e movimentos que lutam pela efetivação plena do direito à comunicação. Já são cerca de 40 grupos (a articulação está aberta a adesões), com focos de atuação em áreas completamente distintas. Entre eles estão Intervozes, Centro de Cultura Luiz Freire, AMARC, GTA, Rits, WACC, Gestos, Sinos, Epcom, Rede DAWN, Indecs, MNDH-PE, Origem, Observatório da Educação – Ação Educativa, Informativo Eletrônico Sete Pontos, Instituto Pensarte, IDCID, Cáritas, Geledés e Cidade do Conhecimento. Todos unidos pelo objetivo comum da ‘democratização da comunicação’.
Definindo o terreno
As aspas não são à toa. ‘Democratização da comunicação’ é um conceito muito amplo se enunciado apenas assim. Em uma definição mais precisa, a luta da Cris Brasil é pelo direito à comunicação. Se pudesse ser resumido em uma frase, o direito à comunicação reconhece o direito individual e coletivo de que sejamos todos produtores de informação, para além de espectadores e leitores. Portanto, não basta ter liberdade de expressão, nem ter acesso a uma boa gama de fontes de informações, apesar disso ser parte fundamental do direito à comunicação. É preciso atuar contra as diferenças econômicas, sociais e políticas que faz tão poucos terem condições de ser produtores de informação.
A noção de liberdade de expressão está englobada, a noção de direito à informação está englobada, mas a bidirecionalidade fica assim reforçada. Essa noção traz o debate de que a comunicação, em todos os tipos de mídia, não é um espaço simplesmente de ‘mediadores que traduzem a realidade’, mas de realização do conflito e de disputa de hegemonia na sociedade. Portanto, um espaço não apenas de especialistas.
Também é a partir da noção de direito que o papel do Estado no debate fica mais claro. Se há a concepção de direito, é preciso que haja uma malha de instituições e regulações que possam garanti-lo. Sem essa noção, podemos ficar num processo de regulação puramente liberal, em que as leis de democratização funcionam como ‘anti-truste’, como é o caso do limite de audiência potencial nos EUA.
No Brasil, no entanto, nem mesmo do ponto de vista liberal há leis que garantam uma ‘concorrência equilibrada’. O país pode discutir porque uma fábrica de chocolate não pode monopolizar o mercado. Mas ainda não se permite debater porque uma mesma emissora pode alcançar 99% dos lares brasileiros com uma programação produzida quase que inteiramente no Rio de Janeiro e São Paulo e sem ter que dar satisfação a ninguém.
Ainda assim, a garantia de equilíbrio seria um olhar limitado, ainda tomando a comunicação como um negócio e a informação como mercadoria. Se entendermos que a comunicação é um direito, a referência é deslocada. Nessa linha, enquanto há impeditivos (sejam eles sociais, políticos, econômicos ou até técnicos) para a realização plena desse direito, é preciso uma postura ativa do Estado de promoção da pluralidade, da diversidade e da luta constante pela superação dessas desigualdades.
Prioridades e foco
A Cris Brasil acaba de definir o seu plano estratégico, e como uma das principais prioridades veio à tona a necessidade de se batalhar pela constituição de um sistema público de comunicação. A constituição prevê a complementariedade dos sistemas privado, estatal e público, mas a definição do que seria esse sistema público nunca foi regulamentada.
Ao se falar de sistema público, não se está pensando apenas em mídias públicas fortes, mas na idéia de apropriação da mídia pelo público. Isso é mais amplo do que um sistema público literalmente, e une políticas de aplicação macro com políticas locais. Essa concepção busca inverter o paradigma que está em mente ao pensarmos nos meios de comunicação. Por vezes parece natural que TVs e rádios tenham donos e que esses meios sejam usados por eles da maneira como bem entendem, para fins comerciais. Isso é justamente o que não deveria ser normal. Assim como não deveria ser normal a idéia de emissoras públicas que estão, na verdade, na mão dos governos estaduais, que as colocam a seu serviço. O Brasil, que passou tanto tempo sob censura estatal, encontra-se hoje sob uma censura privada.
A constituição de um sistema público, entendido como um conjunto de mecanismos que favorecem a apropriação da mídia pelo público, reconhece a necessidade de sair tanto do controle estatal como do controle privado. E favorece a reorganização da mídia no Brasil sob outras referências, incentivando e garantindo a promoção da diversidade cultural, outra prioridade destacada para o ano de 2005.
A busca pela diversidade significa a busca pela igualdade de condições no tratamento de questões lingüísticas, regionais, étnico-raciais, de gênero e de opção sexual, entre outras. A diversidade só se realiza plenamente com a prática da comunicação por todos os diferentes setores sociais. Isso significa que não basta, por exemplo, o negro aparecer na TV numa proporção e tratamento equânime, mas é preciso ter negros produzindo TV. É preciso ter o povo produzindo seus próprios programas. Ter cada canto no país com condição de produzir sua própria mídia.
Além disso, essa idéia de diversidade não se dá apenas no plano nacional, mas também quando se define, por exemplo, em que condições o cinema nacional compete com Hollywood para exibir suas produções em seu próprio país. Em 2005, haverá uma convenção da Unesco para tratar exatamente do tema da diversidade cultural nesse plano internacional, em que alguns países tentam bancar as comunicações como ‘serviços audiovisuais’, portanto negociáveis como outros serviços, e outros buscam medidas de proteção para a produção local.
Socialização do conhecimento
Outros temas também merecem destaque, como a discussão sobre direitos de autor. As leis de propriedade intelectual, da maneira como estão definidas, protegem mais quem comercializa a obra do que o próprio autor. De um lado, as grandes empresas que lucram em cima da exploração comercial de determinada obra; de outro, o mercado da pirataria, que nada mais é do que outra exploração privada, sem autorização, também com fins comerciais. Por fora dessa falsa dicotomia, exemplos da comunidade do software livre e do Creative Commons [veja remissões abaixo] evidenciam que há soluções que estimulam a socialização do conhecimento, em lugar de sua apropriação privada.
É também nesse espírito que aparece a luta pela apropriação social das TICs. Se a noção de inclusão digital fortalece a visão de que é preciso incluir os que estão de fora, a idéia de apropriação social é justamente a da potencialização de políticas públicas para que a população tome as tecnologias para si, produzindo conteúdo próprio e fortalecendo o protagonismo e o uso autônomo das TICs. Com a convergência tecnológica, essa deve ser a tônica inclusive para pensar novos processos de digitalização, como a TV digital.
Dado o contexto, a definição, a conceituação, a pauta e as prioridades, vale ainda um esclarecimento. A manutenção do nome Cris na articulação brasileira não se dá sem motivo. Boa parte das questões que hoje afetam a democratização da comunicação são decididas e executadas no plano internacional. Passam por fóruns como a Organização Mundial do Comércio, a Unesco e a UIT (União Internacional de Telecomunicações) e, em muitos casos chegam, a sobrepor as políticas nacionais. Portanto, se a pauta é internacional, assim também deve ser a luta. E nesse sentido é extremamente importante referenciar-se num movimento global de resistência e luta pelo direito à comunicação.
A interlocução com outras seções nacionais da campanha nos faz compreender que os obstáculos à realização do direito à comunicação na Itália, na Colômbia, nas Filipinas, no Quênia, em Bangladesh e no Brasil têm muito em comum. Cris, ao contrário de um estrangeirismo, é a marca internacionalista da iniciativa.
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Integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, uma das entidades que integram a Cris Brasil.