Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Fotos bonitas, mas cadê o texto?

O suplemento do Diário de S.Paulo (26/12/04) tinha um tema fascinante: a condição feminina em 2004. ‘Elas agitaram 2004: as mulheres animaram o ano com brigas, polêmicas, casamentos, filhos e até casos de polícia’, dizia a capa, ilustrada com fotos da modelo Luma de Oliveira, da atriz Cláudia Abreu e da cantora Rita Lee, entre outras.

Lá dentro, porém, começam os problemas. O noivado de Daniela Cicarelli mereceu parcas linhas. Noivou com um dos maiores jogadores do mundo, mas, como se tornou usual em nossa imprensa, não havia o que comentar, a não ser as marcas de sempre, banalizadas pelo estilo de coluna social badalativa.

Ao lado, um pouco acima, a apresentadora Angélica está beijando Luciano Huck. E a pobreza do texto se acentua. Apesar de registrar que a noiva casou grávida de quatro meses e usou no casamento ‘uma coroa confeccionada com 170 gramas de ouro e 49 diamantes’, a evidente amostra de mudança radical de usos e costumes na sociedade brasileira não inspirou o redator a escrever mais nada. Até parece que a função da página estava limitada a exibir a foto. Exclusivamente.

Linhas pobres

Na página seguinte, Marta Suplicy aparece sorrindo. A legenda é gloriosa: ‘No fim do mandato, com a cidade paralisada pela falta de dinheiro, a prefeita ameaçava destruir em poucas semanas a imagem de uma administração de quatro anos, aprovada por boa parte da população’.

Sem dinheiro a cidade? Aprovada a prefeita? Ela mesma, com autocrítica rara em políticos, dizia em outro jornal que perdera as eleições porque cometera alguns erros básicos, entre os quais o do aumento excessivo de impostos.

Continuemos. À esquerda da prefeita, a mãe de Robinho aparece entre dois policiais. Aquele que está apertando sua mãe, não olha para ela, está com o olhar perdido em algum ponto etéreo, enquanto Marina da Silva parece suplicar um pouco de atenção. Nota dez para o fotógrafo Odival Reis. Mas que nota merece quem fez a legenda tão pobrezinha?

Logo abaixo, três mulheres que mereceram a atenção de todo mundo. Coisa rara no imaginário que envolve o fascínio pela figura feminina no Brasil, as três foram vilãs: Giovana Antonelli, Cláudia Abreu e Renata Sorrah. Três atrizes das melhores que temos, testadas e aprovadas em vários papéis, encarnaram mulheres más. As três ganharam três linhas e três adjetivos. Mesquinha Bárbara, a primeira; vingativa Laura, a segunda; malvada Nazaré, a terceira.

Se os responsáveis pelo texto das respectivas telenovelas que ensejaram a grandeza de tais personagens se comportassem como o redator das pobres linhas, que seria de Da Cor do Pecado, Celebridade e Senhora do Destino? Nada a mais dizer sobre tão radical mudanças no perfil das heroínas de nosso povo?

Círculo vicioso

Adiante. A escritora Hilda Hist mereceu foto com legenda horrorosa, redutora ao extremo: ‘A escritora Hilda Hist, considerada pornográfica nos anos 60, morreu em Campinas’.

Poucos erraram tanto em tão poucas palavras. Hilda escreveu pornografia por uma única razão, que ela explicitou: inconformada com o desprezo por sua literatura, de alta qualidade, perpetrou tralhas pornográficas para ver se vendia alguns livros. E se obtinha a atenção da imprensa. Não foi nenhum crítico maldoso quem disse isso. Foi a autora em desesperado pedido de socorro, provavelmente inconsciente, ao país que tanto ignorou e maltratou seu talento.

E o redator ainda errou a década. Hilda Hist, um de nossos valores literários mais altos, seja qual for o mirante escolhido, não pôde viver de seu ofício. Angélica pode. Daniela Cicarelli pode. As moças do Big Brother podem. Daiane dos Santos pode. As atrizes citadas também podem. Escritora, não! Ainda não! Hilda Hist, não, de jeito nenhum.

E nenhuma outra escritora ou escritor tampouco pode. Sabemos por quê. Mas a edição do suplemento nos ensina com todo vigor pela terrível lacuna, a falha geológica, não do Diário de S.Paulo apenas ou do suplemento em questão, mas de toda a imprensa brasileira, assolada como nunca por falta de texto, de autores, de quem sabe escrever.

Nossos jornais e revistas patinam em tiragens diminutas. Tudo é atribuído a crises de todos os tipos. Poucos fazem o mea-culpa indispensável. E é o seguinte: queremos uma imprensa sem texto. A qualidade das fotos é estupenda. O papel é bom. A diagramação é boa. Na televisão, dá-se o mesmo: alta definição das imagens na tela.

Mas em todo canto, a pergunta que não quer calar: cadê o texto? Enquanto esses redatores estão empregados, escritoras como Hilda Hist morrem abandonadas em algum canto da pátria. E os editores devem estar devolvendo todos os dias pilhas de originais de jovens que, ainda assim, querem escrever num país quase ágrafo. Outros jornalistas, que sabem escrever, devem estar desempregados e humildemente oferecem seus textos quase de graça. Ainda assim, lhes dizem não! Pois os que sobem a editores repetem o eterno círculo vicioso: querem fazer jornais e revistas sem profissionais que saibam escrever. E nas universidades formamos jornalistas.

Quando sai a danada da reforma da imprensa? Tantas reformas são anunciadas. A da imprensa não sai nunca? Não precisa nem ser formulada?