A Folha desta segunda-feira traz uma daquelas raras matérias na imprensa brasileira que tratam de jornalismo.
Mais especificamente, do que acontece com as pessoas comuns que tinham virado notícia – no Brasil de hoje, quase sempre em razão de uma tragédia – depois que deixaram de ser notícia.
A excelente reportagem de Paulo Sampaio, “Vítimas se dizem abandonadas após a mídia virar a página”, examina um problema aparentemente insolúvel, mas nem por isso menos angustiante para aqueles que ainda não permitiram que o ofício os privasse do sentimento de compaixão e que consideram a ética profissional parte de uma ética de vida.
“Cerca de 43 mil pessoas por ano são vítimas de crimes violentos intencionais no Brasil”, lembra a matéria. Mas “apenas alguns episódios de violência recebem atenção extra da mídia”.
Isso acontece, nota Sampaio com agudo senso de realismo, “ou por causa do grau inédito de barbaridade, ou pela falta de concorrente à altura no noticiário, ou, ainda, dependendo da classe social dos envolvidos (quanto mais ricos, mais chocante parece ser) e do local que ocorrem”.
Naturalmente, depois da superexposição, “apagam-se os holofotes, recolhem-se os microfones, boa parte da atenção dispensada aos familiares se desvanece”.
Curta é a memória da mídia.
Entre outros, o repórter conta o caso exemplar de Rosa Vieitas. Eu – e decerto a torcida do Flamengo – não saberia hoje de quem se trata, se o seu nome não viesse acompanhado da informação de que “seu filho, João Hélio, 6, foi brutalmente arrastado pelas ruas do Rio em um assalto ao carro da família”.
O pai do menino conta que o casal tomou o cuidado de evitar os “programas sensacionalistas da tarde”, para aparecer só naqueles nos quais pudesse “transmitir nossos apelos de paz”.
Ainda assim, o casal precisou pedir à Telemar que não divulgasse mais o seu telefone.
Segue-se a pancada:
“Passados quatro meses, em junho, o casal não conseguiu reunir dez pessoas em uma manifestação do movimento Rio Unido contra a Violência, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Ninguém da imprensa.”
A vida é assim. Federico García Lorca, no seu poema “Pranto por Ignácio Sanchez Mejías”, sobre a morte do célebre toureiro de quem era amigo próximo, registra que logo ele fará parte do “montão de cães esquecidos / como todos os mortos desta terra”.
Mas é o caso de perguntar se a imprensa faz tudo o que está ao seu alcance em relação às pessoas que ontem assediava sem cessar por terem sobrevivido a uma violência excepcional ou por serem pais, mães, maridos, mulheres, irmãos, irmãs dos que a ela sucumbiram.
Claro que não cabe à mídia dar assistência psicológica aos traumatizados por um horror indizivel – embora lhe caiba denunciar o abandono a que eventualmente estejam relegados.
Claro também que nessa fábrica de emoções enlatadas chamada cultura de massa tudo é efêmero: os 15 minutos de fama contam para todos quantos saem da obscuridade rumo à glória ou à tragédia.
Claro, por fim, que a mídia às vezes não dá conta nem do fato novo, que dirá do fato amanhecido.
Pois bem. Levando tudo isso em conta, é da agenda do jornalismo de qualidade manter vivas amanhã as histórias com não-celebridades que foram manchete semana passada. Por uma questão de decência humana comum.
Depõe contra a imprensa que nenhum repórter tenha ido cobrir a manifestação de que falam os pais de João Hélio. De resto, se algum tivesse estado lá, voltaria com uma história que um editor sensível perceberia de imediato que merecia ser contada – e explicada: por que tão poucos se associaram a eles, logo a eles, num ato de civismo, numa das mais violentas cidades fluminenses.
Para a saúde moral de uma sociedade, certos acontecimentos não devem ser lembrados apenas “aniversariamente”, como escreveu outro poeta, Fernando Pessoa, dirigindo-se a um suicida relutante: “No dia em que nasceste / E no dia em que morreste”.