Domingo, dois tucanos saíram defendendo o voto distrital. O primeiro, em artigo no Estado, foi o ex-presidente Fernando Henrique, para quem “a hora da reforma política soou”. O segundo foi o candidato Geraldo Alckmin, em declarações reproduzidas nos jornais de hoje.
Foi nisso, embora não só nisso, que deu a apologia da “reforma profunda” para o saneamento dos vícios políticos nacionais, que o presidente Lula passou a fazer.
A mídia não pode deixar essa canoa furada correr solta.
Primeiro, porque ainda está para nascer uma estrutura política imune à corrupção, se ela fizer parte da cultura política do país.
Segundo, porque se pode discutir até o fim dos tempos, sem chegar a uma conclusão, qual sistema – o conjunto das regras do jogo político, eleitoral e parlamentar – mais ajuda ou mais inibe a corrupa. Pois sistemas iguais podem produzem resultados diferentes de país para país conforme uma pá de fatores, entre elas a já referida cultura política nacional.
Terceiro, porque a ventilação do assunto – sem que se responda antes, detalhadamente, à pergunta “Reforma política para quê?” – dá margem a proposições que são piores do que trocar seis por meia dúzia, como essa poção mágica do voto distrital defendido por FH e Alckmin.
Não se pode nunca perder de vista que todo sistema político-eleitoral, por ser uma combinação inevitável de virtudes e defeitos, é um cobertor curto. Trata-se portanto de escolher o que cobrir e o que deixar descoberto.
Por exemplo, o sistema proporcional para a eleição de vereadores, deputados estaduais e federais, que vigora desde sempre no Brasil, tem as seguintes vantagens:
Embora possa melhorar muito, já exprime satisfatoriamente a diversidade de opiniões e interesses de um país-continente como este, abrindo a representação parlamentar a um sem-número de minorias – políticas em especial, mas não só.
Traduz mais ou menos fielmente votos em cadeiras. Se o partido A teve 10% dos votos para deputado, ele não terá muito mais nem muito menos do que 10% das cadeiras na Câmara.
Reduz, no que depender exclusivamente de si mesmo, a possibilidade de formação de feudos eleitorais, e acentua o compartilhamento do poder entre Executivo e Legislativo.
Por isso – e essa a sua primeira desvantagem –, praticamente exige a formação de alianças de conveniência, sabe-se lá a que preço, para o governante conseguir governar. Daí o regime brasileiro ser chamado “presidencialismo de coalizão”.
Daí, mais ainda, a longevidade de políticos e partidos que são governo desde criancinha, qualquer que seja o governante de turno.
Promove a proliferação de partidos que só representam os seus caciques e os interesses diretamente a eles associados. É o que os especialistas chamam “fragmentação do sistema partidário”.
E não cria vínculos fortes entre representantes e representados, ainda por cima quando a lei permite que os partidos se coliguem nas eleições para as câmaras legislativas. O resultado é que o eleitor vota no candidato X do partido A e, sem saber, acaba elegendo o candidato Y do partido B, a ele coligado.
Agora, o sistema distrital que substituiria esse – e que, na Constituinte de 1998 foi descartado ainda na fase das subcomissões, sem chegar nem na porta plenário – lembra a proverbial emenda pior do que o soneto.
Hoje, cada Estado elege, proporcionalmente à votação de cada partido ou coligação partidária, um certo número de deputados federais em um distrito único, por assim dizer, que é o próprio Estado, uma realidade histórica.
No sistema distrital, o Estado de São Paulo, por exemplo, com direito a 70 deputados, seria dividido em 70 distritos. Em cada um, ganhará o candidato mais votado e ponto. Naturalmente, ninguém poderá se candidatar por mais de um distrito.
Agora, como se recortariam todos esses distritos, para ter aproximadamente o mesmo número de eleitores, como manda a norma? Será uma homérica briga de foice entre os partidos, cada qual querendo distritalizar o pedaço do Estado que é um dos seus tradicionais redutos eleitorais.
A distorção na definição e redefinição (conforme as variações demográficas do eleitorado) dos distritos será fatal. Nos Estados Unidos, um dos únicos quatro países importantes que adotam o sistema [os outros são o Canadá, o Reino Unido e a Índia], o rearranjo malandro dos distritos é rotina. Tem até nome: gerrymandering.
Mas passemos. Quais seriam as consequências do sistema para a representação política da sociedade?
Em primeiro lugar, as minorias e os partidos minoritários dançam. Porque o sistema distorce a relação entre votos e representação.
Imaginem um partido cujos candidatos sejam sempre os segundos mais votados – mas nunca os mais votados – em cada um dos 513 distritos para a eleição dos 513 deputados federais brasileiros. Esse partido, dono de uma votação expressiva, não elegerá nem um único parlamentar.
Um exemplo que entrou para a história foi o da eleição canadense de 1993. O partido que teve mais votos (16% do total) elegeu dois deputados. O partido que teve menos votos (7% do total) elegeu nove. O partido que ficou entre esses dois elegeu 54.
Perde-se em representação e em competição aberta entre os partidos. E se criam feudos eleitorais praticamente inamovíveis. Nos Estados Unidos, mais da metade das 439 cadeiras da Câmara são consideradas “não em disputa” [undisputed seats], porque em cada uma delas, eleição depois de eleição, ganha sempre o mesmo candidato, enquanto vivo for.
Esses deputados e seus eleitores estão muito mais perto uns dos outros do que estariam no sistema proporcional [adotado no Brasil e na esmagadora maioria dos países]. Por isso, os eleitos acabam funcionando antes como “vereadores federais” dos seus redutos do que como porta-vozes de amplos setores da opinião pública nacional.
A sua reeleição depende fortemente do número e da importância das emendas ao Orçamento da União que conseguiram aprovar em benefício de suas clientelas.
Por falar em Estados Unidos com o seu voto distrital de nascença, todos os termos usados pelos especialistas para designar espertezas e maracutaias políticas são made in USA. Foram inventados pelos americanos para dar nome a práticas que, embora também existindo em outros países, ali surgiram ou se tornaram inseparáveis das decisões de governo.
Mas aqui não se fala em reforma política e em voto distrital para fortalecer o sistema partidário? Pois o sistema distrital, por excelência, é aquele em que o eleitor escolhe entre pessoas, e não entre pessoas e também partidos.
O sistema distrital, por outro lado, agrega maiorias parlamentares – que serão tanto mais “majoritárias” quanto menor o número de partidos sobreviventes. Dois nos Estados Unidos, três na Grã-Bretanha, por exemplo. Faz aumentar a governabilidade, em prejuízo da representatividade.
Aparentemente é mais eficaz, certamente é menos democrático – e, a julgar pela experiência internacional, a começar dos Estados Unidos, tão sujeito à corrupção quanto o sistema proporcional.
Se o assunto reforma política se firmar na ordem do dia, a imprensa não poderá deixar de perguntar, sobre o voto distrital, se é isso mesmo que se quer para o Brasil.
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