Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Passando fogo, o Brasil é de morte

O Globo acertou na mosca ao dar hoje em manchete de primeira página — embora com um erro —, que o Brasil “é o segundo do mundo em mortes por armas de fogo”. O erro é que o Brasil é o segundo não do mundo, mas dos 57 países sobre os quais a Unesco, a organização das Nações Unidas para educação, ciência e cultura, conseguiu levantar dados consistentes. O primeiro é a Venezuela.


Dos três grandes jornais nacionais, o da família Marinho foi o único a sacar a assustadora importância — e a atualidade — da notícia. Além da manchete, publicou na principal seção, O País, uma reportagem decente a respeito da pesquisa, acompanhada de um atraente infográfico, que mostra também quais armas e em que proporção frequentam as escolas brasileiras (outro achado da Unesco).


O Estado de S.Paulo ainda produziu uma matéria trabalhada no caderno Cidades/Metrópole, com título e subtítulo fortes no alto da página, e uma história de livro de texto — a de um jovem paulistano que ficou paralítico ao levar um tiro em um incidente de trânsito. Já a Folha, que costuma ser boa nessas coisas liquidou a história em menos de 60 burocráticas linhas de coluna, acima apenas da seção de falecimentos.


O assunto é especialmente atual porque a “bancada da bala” na Câmara dos Deputados, com a mal-disfarçada cumplicidade do presidente Severino Cavalcanti, vem fazendo o que pode para adiar às calendas a votação do projeto que regulamenta o referendo sobre a proibição da venda de armas e munições, estabelecida no Estatuto do Desarmamento, aprovado pelo Congresso em dezembro de 2003.


O projeto começou a tramitar no ano passado. Ainda não passou da Comissão de Constituição e Justiça. O parecer do relator, o ex-presidente da Câmara João Paulo Cunha, poderá ser votado na semana entrante, mas talvez não convenha apostar nisso.


Segundo a lei, o referendo precisa ser realizado em outubro próximo. E a Justiça Eleitoral, naturalmente, precisa de tempo para preparar a votação — que é tudo que o business do gatilho e a direita em geral querem evitar que aconteça, para melar a proibição de vez.


A menos que o eleitor seja chamado a responder a uma pergunta facciosa do tipo “Você é a favor ou contra a venda e o porte de armas de fogo, mesmo para a defesa pessoal ou da família?”


Pelo levantamento da Unesco, em 2002 morreram a bala no Brasil 22 pessoas por 100 mil habitantes, em acidentes, homicídios, suicídios e situações indeterminadas, ou qualquer coisa entre 35 mil e 40 mil vítimas. As mortes por homicídio foram 20 por 100 mil.


O que não consta dessa pesquisa, mas de outra que a Unesco está terminando, é que entre 1979 e 2003, das 550 mil mortes no país de causas não naturais (incluíndo suicídios e acidentes), 500 mil — ou 90% — resultaram de tentativas de homicídio consumadas com arma de fogo.


Nos Estados Unidos, a terra do bangue-bangue, onde já se disse que a violência é tão parte da cultura nacional como a torta de maçã, a mesma proporção não chega a 70%.


Os balísticos americanos, além de invocar malandramente o direito constitucional de “portar armas” — instituído há mais de dois séculos para proteger as pessoas dos abusos das autoridades de então — argumentam que “evitar que pessoas idôneas usem armas de fogo não acaba com a violência; simplesmente deixa as vítimas mais vulneráveis”, nas palavras de John R. Lott Jr., o grão-ideólogo da tenebrosa e multimilionária National Rifle Association (a do ator Charlton Heston, com quem Michael Moore fez a festa no filme sobre a chacina de Columbine).


A mesma falsa rationale é usada no Brasil. Falsa porque não tem base. Já em 1999 um estudo da Secretaria de Segurança de São Paulo concluiu que a possibilidade de uma pessoa armada ser morta por assaltantes é 56% maior do que se estivesse desarmada.


Armas evitam algo como uma em sete tentativas de assalto, não mais. Anos atrás, numa matéria de capa sobre o assunto a Veja citou um criminalista de São Paulo que investigou 16 casos de pessoas que tentaram se defender do ladrão a mão armada: 15 acabaram assassinadas.


Está suficientemente demonstrado que, na hora do roubo, ser visto com uma arma é um enorme fator de risco. Para o armado e para outros: o mesmo estudo de 1999 mostrou que cada latrocínio com vítima armada deixa em média 2,2 mortes; com vítima desarmada, 1,5. Se assim não fosse, a polícia não aconselharia os cidadãos a ficar frios e não reagir em caso de assalto.


E a história de que a arma reduz a vulnerabilidade de quem a tem consigo é rationale porque o que faz alguém querer andar com um tresoitão carregado Freud explica — e a explicação não é muito lisonjeira para a confiança dos seus portadores na própria virilidade.


Tem mais: assim como ninguém deixa de assaltar hoje em dia de medo que o assaltado reaja a bala, ninguém passará a assaltar mais do que já assalta só porque as suas vítimas em potencial presumivelmente obedecem ao Estatudo do Desarmamento.


E tem ainda mais: a proibição de portar armas diminuirá — como em todos os lugares onde foi adotada — o perigo de que um não criminoso profissional mate outro como ele “por motivos fúteis”, conforme o jargão dos inquéritos.


Briga de trânsito, ou menos do que isso — como o episódio do jovem que perdeu os movimentos das pernas por causa de um disparo do motorista cujo carro o dele tinha raspado, que o Estadão descreve hoje — é o exemplo óbvio.


A Veja calculou que 10% dos 22 mil homicídios a bala que ocorrem por ano no Brasil deixariam de acontecer se pessoas “normais” não pudessem ter armas.


Uma vez escrevi: “Creio não ser um caso excepcional ao revelar que, não uma, nem duas vezes, já passou pela minha cabeça a fantasia do revide absoluto: “Ah, se eu estivesse armado, teria dado um tiro naquele sujeito!” Prefiro remoer pelo resto da vida a frustração de não ter tido os meios de manifestar minha justa ira, como imagino que gostaria, do que sofrer — ou, pior ainda, não sofrer — o remorso de ter acabado com a vida alheia. Em suma, se o revólver é uma arma que tende a se voltar contra mim mesmo, de uma forma ou de outra, não concebo motivo razoável para que me seja dado o direito de ter um.”


Essas palavras devem ter pegado na veia dos balísticos porque, a julgar pelos e-mails que me dispararam, se insulto matasse eu já não estaria aqui soltando o verbo.