Noticia o Painel da Folha de S. Paulo deste domingo (21/5) que o secretário de Administração Penitenciária, Nagashi Furukawa, sugeriu o envio de presos do PCC para a Ilha Anchieta, município de Ubatuba, litoral norte paulista. Como o presídio que havia no local está em ruínas, eles ficariam em barracas.
Prisioneiros em barracas ou barracões, cercados por tropas, é campo de concentração. Já houve no Brasil. Na seca de 1915, flagelados que invadiam Fortaleza em busca de água e comida foram reunidos num campo do lado de fora da cidade – assediada um ano antes por combates políticos. O esquema voltou a ser usado na seca de 1930/32. Getúlio Vargas mandou prisioneiros políticos para campos de concentração antes e depois da decretação do Estado Novo (novembro de 1937). Ainda na seca de 1957/8 a situação se repetiu nos arredores da capital cearense.
Carnificina na ilha
Se o Painel da Folha tivesse tido a curiosidade de saber por que o presídio da Ilha Anchieta, inaugurado em 1904, foi fechado em 1955, teria deparado com uma carnificina considerada a maior da história prisional do mundo, até o massacre do Carandiru. Em números absolutos, o Carandiru foi pior. Em números relativos, a rebelião da Ilha Anchieta continua ímpar. Entre presos rebelados, policiais, funcionários da prisão e soldados, cem mortos. O estado de São Paulo tinha então pouco mais de 9 milhões de habitantes. Faça a conta, leitor: em proporção à população atual, de 40 milhões, seriam 444 mortos. Numa só rebelião. Alguém acha que não fica memória disso no sistema prisional?
Comida ruim e pancadaria
O episódio é relatado no volume IV, 1945/1960, da publicação Nosso Século (Abril Cultural, 1980).
Uma rebelião foi liderada por João Pereira Lima, vulgo Pernambuco, em 20 de junho de 1952. Governo de Lucas Nogueira Garcez. Tudo parecido com o que existe hoje.
A explicação dada pelo líder, segundo o Nosso Século:
“Há muito tempo, os presos viviam descontentes com o regime do presídio. (….) Os policiais obrigavam os doentes a tomar purgantes e, depois, os sujeitavam a carregar lenha do mato. (….) E nem é bom falar da alimentação que nos davam, era uma porcaria. É lógico, o indivíduo doente e tomando purgante não ia agüentar o rojão [cortar lenha num morro próximo]. Mas aí, os tais policiais chegavam e começavam a espancar todo mundo. E foi esse o real motivo da rebelião”.
E a publicação complementa: “Além dessas condições carcerárias, os 453 presidiários que viviam na ilha tinham que enfrentar dois outros problemas: muitos deles estavam com as penas vencidas, mas continuavam presos por falta de assistência jurídica; por outro lado, as visitas de familiares eram raras, devido às difíceis condições de acesso à ilha”.
Os presos rebelados só foram dominados com a intervenção, ao lado da polícia, de soldados do IV Regimento de Infantaria.
Problema para várias gerações
Na Folha de ontem o sociólogo Michel Misse alertou que a criminalidade violenta é problema para mais de uma geração resolver. As condições em que se desenvolveu foram criadas ao longo de uma espécie de guerra contra o povo movida pelo Estado brasileiro. É uma situação complexa e ambígua, porque a democratização fez com que o Estado se tornasse também cada vez mais permeável a demandas e necessidades dos eleitores. As promessas contidas na eleição de Luiz Inácio Lula da Silva o demonstram.
Mas o padrão de violência fica muito claro numa breve recapitulação.
Dutra, mão de ferro
No governo de Eurico Dutra (1946-1951), como se sabe, houve uma repressão sangrenta aos comunistas, colocados na ilegalidade em 1947. O sociólogo José de Souza Martins descreveu os efeitos em Santo André, na Grande São Paulo, dessa onda de prisões, assassinatos e deportações. Moradores da cidade passaram décadas sem tocar no assunto.
Dutra havia participado de muita repressão, desde o episódio dos 18 do Forte, em 1922, passando pela chamada Intentona Comunista, em 1935, e pela tentativa de golpe integralista, em 1938. O general Dutra, ministro da Guerra de Getúlio Vargas, autorizara, em maio de 1937, o massacre, pela polícia do Ceará, de remanescentes do Sítio do Caldeirão, liderados por um beato chamado José Lourenço. Até aviação militar foi usada para liquidar entre 500 e 1.000 homens, mulheres e crianças.
Cabeças cortadas
O final do bando do cangaceiro Lampião entrou para o imaginário brasileiro. Há muita literatura sobre o assunto. Este pobre escriba não a domina. Vamos a um resumo, tirado também do Nosso Século (vol. III, 1930-1945):
“Os soldados atacaram de surpresa, numa madrugada de julho de 1938. Lampião e Maria Bonita foram mortos, com mais nove companheiros. Os outros conseguiram fugir. Os onze cangaceiros mortos foram degolados, e suas cabeças expostas nas escadarias da igreja matriz de Santana do Ipanema, cidade próxima [da Fazenda do Angico, em Sergipe, perto da fronteira com Alagoas]. De lá, foram conduzias a Maceió, e depois para Salvador, onde foram mumificadas e entraram para o acervo do Museu Nina Rodrigues.
“Uma semana depois do massacre de Angico, o cangaceiro Corisco – o ´Diabo Louro´ –, que havia se separado de Lampião, constituindo um bando à parte, desfechou ataques fulminantes sobre cidades à margem do Rio São Francisco como vingança pela morte de seu amigo. Jurou matar todas as pessoas de sobrenome Bezerra [João Bezerra, tenente da Força Pública alagoana, descobrira o esconderijo de Lampião]. Enviou algumas cabeças cortadas ao prefeito do povoado de Piranhas, com um bilhete: ´Se o negócio é de cabeças, vou mandar em quantidade´. Corisco foi morto em julho de 1940. Terminava o cangaço”.
Contestado, a Chibata, Canudos
Para terminar, uma relação que, como os parágrafos acima, tem intenção apenas exemplificativa. Para ajudar a deslocar o pensamento do quadro “mocinhos X bandidos”.
Se ao leitor ocorrerem outros episódios, por favor se manifeste.
Entre 1912 e 1916, no oeste de Santa Catarina, região do Contestado, objeto de disputa de limites com o Paraná, uma “guerra santa” entre o Estado e camponeses seguidores do assim dito monge João Maria, deixou 20 mil mortos.
Em 1910, a Revolta da Chibata, no Rio de Janeiro, terminou em massacre. A citação, mais uma vez, é extraída do Nosso Século (vol. I, 1900-1910):
“Na noite morna de 22 de novembro de 1910, um tiro de canhão quebrou a paz da Baía de Guanabara, despertando de seu sono os habitantes da cidade. Era o começo da rebelião dos marinheiros, fartos da ´lei da chibata´, da péssima alimentação nos navios e dos maus-tratos. No dia seguinte, a República inteira seria sacudida pela rebelião. (….) Em dezembro, outra revolta, dessa vez na base naval da Ilha das Cobras, justificou um verdadeiro massacre. Vários marinheiros anistiados, já em liberdade, foram presos e posteriormente fuzilados no cargueiro Satélite. Outros foram enviados para os seringais do Acre. Mas a maior parte dos líderes da revolta morreria, nas masmorras da Ilha das Cobras, asfixiada com cal virgem, ´jogada com água dentro do subterrâneo´, segundo depoimento de João Cândido, o líder sobrevivente, ao historiador Edmar Morel.”
O Arraial de Canudos, fundado em 1895 por 8 mil sertanejos sob a liderança do beato Antônio Conselheiro, também suscitou farta literatura, capitaneada por Os Sertões, de Euclides da Cunha. Literatura que eu igualmente não domino. Daí o recurso à síntese feita nesse trabalho notável que foi o Nosso Século (novamente, vol. I):
“Em 1896, dois contingentes da República, um com 600 homens e outro com 1.500, apesar de fortemente armados, foram derrotados pelos sertanejos, cuja munição principal eram paus e pedras. Só um ano depois, em 1897, Antônio Conselheiro seria morto e a população de Canudos dizimada por um exército de mais de 6.000 homens”.
Nesse pequeno e, insisto, imperfeitíssimo exercício de memória, fica não uma tentativa de misturar fenômenos distintos, nem de fazer comparações indevidas, mas de mostrar determinados padrões, no Brasil republicano, portanto legalmente pós-escravista, de violência que engendra violência reprimida com violência.