Ao final da refeição pedi um palito ao empregado de mesa (que em Portugal não é garçõn). e percebi que o homem não me entendia.
Repeti-lhe o pedido, esforçando-me por esclarecer cada sílaba:
– Pa-li-to. Pal-li-to.
Foi pior. Ele abanou-me a cabeça, desorientado. Até que, após um momento de reflexão, o seu semi-analfabetismo permitiu-lhe decifrar:
– Ah sim! Palito!
E, solícito, foi buscar a ferramenta pós prandial que eu pedira.
O palito que ele dizia era diferente do meu. Eu devia ter dito alguma coisa que se assemelhasse a pelito, criando, para a primeira sílaba, um som vocálico intermediário entre o a e o e fechado. Mal alfabetizado, o homem não conseguira descodificar a minha pronúncia clara e facilmente referente à ortografia da palavra.
Da mesma forma, uma das primeiras empregadas que tivemos em casa, quando morávamos ainda no Porto, deixou para a minha mulher o seguinte bilhete, escrito em seus garranchos de quase analfabeta: ‘Eu quero que a senhora bá ber como arranjei o frigorífico.’
Escreveu como pronunciava. O que não é uma regra ortográfica em Portugal.
Fato de banho
Aqui, os sons vocálicos sofrem uma grande variação, a depender da palavra em que estejam. O e inicial, por exemplo, quando fechado, com frequência transforma-se em i, como em elegante, que à portuguesa se diz el´fante. Em certa ocasião, ao parar o seu carro na área L de um parque de estacionamento, um amigo ligou-me para o telemóvel (ou seja, para o meu celular) e informou-me que me esperava no El. E disse-o com tal pronúncia que comecei a procurar, no centro comercial onde nos encontrávamos, alguma coisa que se parecesse com um hall, como me soou a palavra dita por ele. Um e menos aberto do que o nosso e a semi-deglutição da segunda sílaba levava-me à confusão.
Os portugueses gostam do som melodioso da pronúncia brasileira, que contrasta com o tom cerrado e quase soturno da fala lusitana. Mas nem sempre a entendem.
O inverso é ainda pior. O ouvido brasileiro decifra mal o sotaque português.
Que, entretanto, é muito mais variado e rico do que supõem os brasileiros. No falar fechado dos portugueses, em que se misturam ancestrais e recentes influências, há diversidades e sutilezas que passam completamente despercebidas por quem fala com o relaxamento e a frequente má articulação do brasileiro médio. Por exemplo: entre o substantivo pelo (que na ortografia lusitana leva acento circunflexo) e pelo, contração de preposição e artigo, há uma enorme e substancial diferença prosódica. Mais: em palavras como recepção e decepção o p não soa e serve para marcar uma abertura do som do e que o precede. Bem diferente do que acontece na /recepição/ e na /decepição/ brasileiras. Mas a palavra indenização aqui se escreve indemnização e o m que precede o n tem plena sonoridade. O que acontece também em amnistia. Um m não vocalizado porém, bem distinto do que seria pronunciado no Brasil: /aministia/.
Facto, com c sonoro, é o nosso fato, ocorrência. E fato, sem c nenhum, é o nosso terno, palavra também usada em fato de banho (maiô) ou fato de treino (abrigo de ginástica, jogging).
Produtos voláteis
A par disso, ocorrem as diferenças regionais. Existem em Portugal múltiplos sotaques, dos quais o ouvido brasileiro mal se dá conta. A pronúncia do Porto é dada como a mais feia, à semelhança do que acontece no Brasil com a fala caipirona do interior de São Paulo e do Paraná. Mas há outras nuances pelo Norte. O coimbrão soa diferente do lisboeta. É notável também o sotaque de Viseu. E o alentejano tem um jeito próprio de falar cantado e com omissões de sílabas. Na Madeira e nos Açores, de falares diferentes, eu diria que a pronúncia é ‘bicuda’.
Bola, com o fechado, é o feminino de bolo, empregado em bola de carne, por exemplo. Mas diferente de bola, com o aberto, que é a mesmo bola que chutamos todos, cá e lá.
A lista é infindável. E exige do ouvido recém-chegado um extraordinário esforço de reeducação. As novelas brasileiras têm sido um bom exercício no sentido Brasil-Portugal. Mas, na direção inversa, as telenovelas portuguesas exportadas para o Brasil tiveram, afinal, que ser dubladas para que fossem entendidas. Dobradas, como se diz aqui.
Não foi à-toa, pois, que Bibi Ferreira, ao preparar-se para viver Amália Rodrigues no teatro, comentou:
– É muito difícil estudar a prosódia portuguesa – é sílaba por sílaba.
Por vezes, para bom entendedor meia palavra não basta. É preciso dizê-la toda e com pronúncia muito adequada.
Atenção, pois, para quando ouvir um ‘sais’ pronunciado por algum lisboeta. Porque não estará certamente referindo-se a produtos voláteis que fazem pessoas acordar de desmaios, mas simplesmente ao número seis, onde o ditongo ei soa como ai.