Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Para ver a TV Globo

Tenho acompanhado as notícias sobre o lançamento da biografia de Roberto Marinho, escrita por Pedro Bial (Roberto Marinho, Jorge Zahar Editor, 2004), notadamente as produzidas pela TV Globo e Globo News pelo repórter Edney Silvestre.

Questiono a idéia de que a Globo tenha tido ao longo de sua história compromisso incondicional com a formação de uma nação cidadã, como tentam colocar as matérias e, provavelmente, o livro de Pedro Bial.

Mas estou escrevendo mesmo é por algo mais específico. Em matéria do Jornal Nacional (edição de 2/12), relembrando as principais passagens da trajetória profissional de Marinho, Silvestre citou o episódio da história da mídia do Brasil que ficou conhecido como o ‘caso Time-Life’. Dizia assim a matéria:

‘(…) Mas a vida de Roberto Marinho não foi apenas uma sucessão de vitórias. O livro também revela o homem e seus problemas. (…) Assim como os detalhes da CPI que apurou a acusação de que Roberto Marinho seria testa-de-ferro de um grupo americano na criação da TV Globo. Intimado, depôs das duas da tarde até às três da manhã. Ao fim, a operação foi considerada legal pela Procuradoria da República (…)’.

Pois bem. O resultado da Comissão Parlamentar de Inquérito, que em 1966 investigou as denúncias envolvendo a TV Globo e o grupo norte-americano Time-Life, está muito bem documentado e disponível a qualquer pessoa que tenha dúvidas a respeito da ilegalidade do acordo. Tal documento encontra-se arquivado na biblioteca do Senado Federal. Ele diz o seguinte:

‘1º) Os contratos firmados entre a TV Globo e Time-Life ferem o artigo 160 da Constituição, porque uma empresa estrangeira não pode participar da orientação intelectual e administrativa de sociedade concessionária de canal de televisão; por isso, sugere-se ao Poder Executivo aplicar à empresa faltosa a punição legal pela infringência daquele dispositivo constitucional;

2º) Deve ser remetida ao Poder Executivo cópia autêntica dos autos desta Comissão de Inquérito, para comprovação das providências sugeridas;

3º) A Mesa da Câmara dos Deputados criará, nos termos do Regimento Interno, uma Comissão Especial, interpartidária, para elaborar legislação específica sobre televisão, incluindo-se, também, rádio e jornal, para preservar a sua nacionalização, dada a presença de capitais estrangeiros nas organizações que exploram esta atividade;

4º) Esta Resolução entrará em vigor na data de sua publicação, refugadas as disposições em contrário.

Sala de Reuniões, em 22 de agosto de 1966. Deputado Roberto Saturnino, Presidente. Deputado Djalma Marinho, Relator’.

Projeto de resolução

De fato, Roberto Marinho foi inocentado de todas as acusações. Mas não pela Comissão Parlamentar de Inquérito, nem em 1966, e sim pelo general Arthur da Costa e Silva, que, em 1968, num gesto arbitrário, decidiu que os acordos Time-Life não feriam a Constituição brasileira, apesar do resultado das investigações.

Vejam a que ponto chegamos, quase 40 anos depois. Li num livro de Ítalo Calvino que a mentira não está no discurso, mas nas coisas… Então, não deveria a emissora continuar se omitindo? Se Marinho nunca falou publicamente a respeito (exceto em seu depoimento na CPI), por que desenterrar isso agora?

Talvez seja erro estratégico. Gostaria de lembrar que o ‘Projeto Memória’, divulgado pela TV Globo como uma frente de luta pela preservação da memória nacional, vale-se basicamente de material jornalístico e ficcional produzido pela TV Globo ao longo desses 39 anos. Duas considerações a esse respeito:

1. esse material tem pérolas como a notícia que confundiu os comícios pelas eleições diretas com as comemorações cívicas pelo aniversário da cidade de São Paulo;

2. para ter acesso ao material, o interessado deve preencher um formulário que especifica o teor da pesquisa e que resguarda à empresa (Globo) os direitos sobre o material produzido pelo pesquisador.

Ajudei uma aluna a preencher um desses formulários. Para quem quiser sanar dúvidas, os documentos da CPI de 1966 intitulam- se ‘Projeto de Resolução nº 190, de 1966: Aprova as conclusões da Comissão Parlamentar de Inquérito para apurar os fatos relacionados com a organização Rádio, TV e Jornal O Globo com as empresas estrangeiras dirigentes das revistas Time e Life (Brasília: Câmara dos Deputados, 1967)’. Estão disponíveis na Biblioteca do Senado, em Brasília.

Cópia dos acordos

Há também uma cópia integral na Universidade Metodista de São Paulo, em São Bernardo do Campo (‘Conspiração patrocinada: documentos’, que é o segundo volume de minha dissertação de mestrado). Se preferir um trabalho mais analítico, leia o livro A história secreta da Rede Globo, do professor Daniel Herz (Editora Ortiz), que além de trechos dos documentos da CPI traz anexada uma cópia dos acordos Time-Life.

Se nunca ouviu falar dessa história, o link (http://www.fai.com.br/publicacoes/midia.htm) leva à versão em PDF de um resumo do meu trabalho de mestrado, que trata da reação de Assis Chateaubriand aos acordos. É necessário baixar o livro todo – mas vale a pena, pois todos os trabalhos discorrem sobre aspectos importantes da mídia brasileira, incluindo os históricos). O capítulo intitula-se ‘História da TV no Brasil: Assis Chateaubriand e os acordos Time-Life’.

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Mestre em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo (Umesp), professora do Centro Regional Universitário de Espírito Santo do Pinhal (SP) e do Centro Universitário Barão de Mauá (Ribeirão Preto, SP)