Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Juliano, que não será americano

O Boston Globe, do grupo New York Times, publica hoje uma reportagem que talvez tenha a ensinar uma coisa ou outra aos correspondentes brasileiros nos Estados Unidos em matéria de ir atrás de histórias com os nossos expatriados na América.

Os enviados permanentes dos jornais brasileiros são em geral repórteres de primeira linha, como Paulo Sotero, do Estado, e José Meirelles Passos, do Globo. Mas eles cobrem quase exclusivamente Washington, onde estão baseados, ou seja, os grandes fatos da política, economia e relações internacionais — e as hard news envolvendo o Brasil.

Fico pensando na bela matéria que poderiam ter feito se tivessem ouvido falar de Juliano Foleiss — o personagem central da história de 1.300 palavras que leva a assinatura da repórter do Globe, Megan Woolhouse.

Hoje é a festa de sua formatura no Colégio Regional Vocacional Assabet Valley, em Marlborough, Massachusetts. Ele será um dos dois oradores da turma. No seu discurso, vai abrir um segredo: ele é um imigrante “undocumented”, eufemismo politicamente correto para ilegal.

Com vistos de turistas válidos por seis meses e pouca baagagem para não chamar a atenção, os pais de Juliano trocaram Maringá por Marlborough há cinco anos. Anamaria, a mãe, tinha ouvido a irmã, que vivia ali, falar maravilhas do lugar, especialmente da qualidade das suas escolas públicas.

Para repetir o chavão dos chavões em histórias do gênero, o começo foi difícil. Juliano, então com 13 anos, e o irmão Gabriel, com 11, mais o pai (advogado de formação) e a mãe (professora de jardim de infância no Paraná), tinham que dormir no chão do apertado apartamento da tia. Não deu certo.

Ser ter para onde ir, parecia que eles teriam de dormir durante algum tempo no seu velho Toyota Camry, sem aquecedor. Mas então Anamaria conheceu numa igreja outro brasileiro, Armando Reis, que os abrigou por seis meses — sem cobrar nada.

A essa altura, Juliano e Gabriel já estavam na escola, e os pais arranjaram trabalho em um hotel local. O pai dobrava a jornada como trabalhador manual. Assim que possível, conseguiram alugar um apê de sala e quarto por US$ 700 mensais.

Mesmo vivendo com o medo de serem todos apanhados e deportados, Juliano foi em frente. Aprendeu inglês, tirava as maiores notas em quase todas as matérias e sonhava com um diploma universitário em ciência da computação.

Driblava as perguntas sobre a sua situação legal e jamais contou que, entre a casa da tia e o apartamento de Armando, ele não sabia o que fazer quando as aulas acabavam.

Com todas as suas mazelas, a América ainda é outra coisa. Para serem empregados, os pais de Juliano só precisaram mostrar os passaportes e dar o número do CPF. Uma lei federal obriga as escolas públicas a admitir estudantes, qualquer que seja a sua cidadania. E, pelo menos na Assabet Valley High School, os professores fingem que não sabem que muitos alunos são imigrantes clandestinos.

A última coisa que queriam de Juliano é que ele mostrasse que estava com os documentos em ordem. “Adoraríamos ter uma escola cheia de Julianos”, disse ao Globe o orientador educacional do colégio.

Não é para menos: além das pencas de notas estelares, até mesmo em inglês, ele trabalhava meio período em um supermercado para reforçar o caixa de casa, era simpático e disciplinado.

Um dia, vasculhando móveis descartados que para os Foleiss ainda podiam ter muita serventia, ele achou um computador avariado e o reconstruiu. Virou um dos principais programadores de robótica do seu grupo. Este ano se empregou como estagiário remunerado como assistente de tecnologia da informação numa companhia em Littleton.

Quando a sua professora de inglês ouviu de um colega que Juliano era um ilegal, ela se ofereceu para adotá-lo, o que impediria que fosse expulso do país.

O convite chegou tarde demais. No dia 5 de julho, a família volta para o Brasil. Mais do que isso, ele não pode ficar, mesmo clandestino, por falta de dinheiro para pagar a faculdade. Não sendo americano, ele não pode pedir desconto na anuidade. Não podendo se inscrever no Seguro Social, também não pode pedir bolsa ou empréstimo.

Esse é, afinal, o ponto da matéria do Globe. O seu foco não é propriamente a saga de mais um dos milhões de ilegais na América, mas o debate sobre um projeto de lei, em Massachusetts, que daria aos filhos de imigrantes sem documentos os mesmos direitos de acesso ao sistema estadual de ensino superior de que desfrutam os cidadãos americanos. Uma primeira versão da proposta foi vetada pelo governador no ano passado.

Do ponto de vista de um jornal progressista de Boston, nada melhor do que a história de Juliano para sair em defesa do projeto. Para marcar posição, a reportagem cita a educadora do colégio do qual ele se despede hoje, Aldina Vieira — pelo visto, só dá nomes brasileiros no pedaço. Ela fala da “decepção e dor” de estudantes como Juliano ao descobrirem que, por melhor que seja o seu desempenho escolar, a lei do Estado fecha-lhes as portas da universidade.

E não por acaso o chamado fecho glorioso da matéria são estas aspas de Juliano: “Todos os meus professores, todos os meus amigos me deram tudo. Só não entendo porque alguém não me permite retribuir” — para o progresso americano, está implícito.

Do ponto de vista de um leitor brasileiro, a história poderá ter um final não agridoce, como escreveu a repórter, mas feliz, se Juliano conseguir o que pretende: cursar uma faculdade pública no Brasil, virar um craque da informática, para um dia levar a tecnologia aos pobres.

Qual é mesmo a data do próximo vestibular para o curso de Engenharia da Computação no ITA?