Para muitos, televisão no Brasil é sinônimo de indigência cultural. Outros vão mais longe e acabam condenando o próprio veículo. Sua natureza seria incompatível com a reflexão e o pensamento crítico. Será?
Há exemplos que contradizem tais afirmações. Claro que a maioria é de antigamente, quando a TV ainda não havia sido totalmente controlada pelo mercado e podia explorar algumas brechas da programação com inteligência. Até os telejornais eram mais criativos e instigantes, bastando lembrar o Jornal de Vanguarda, da extinta TV Excelsior. Havia inteligência na música, nos teleteatros e até mesmo em algumas novelas. Portanto, o problema não é do veículo, e sim, de quem o controla.
Não fosse dessa forma, talvez nunca um dramaturgo do porte e com as características de Samuel Beckett tivesse a oportunidade de escrever para a televisão. Foram cinco peças transmitidas na Grã-Bretanha e na Alemanha. Eh, Joe – A piece for television, de 1966; Ghost trio, de 1977; But the clouds, do mesmo ano; Quad 1+2, de 1982; e Nacht und Träume, também de 1982. Ressalte-se que em ambos os países as peças foram transmitidas por emissoras públicas, abertas à inovação e ao experimentalismo. O que só reforça a importância do modelo para a criação de outros paradigmas, capazes de mostrar ao público caminhos diferentes dos traçados convencionalmente pelos meios comerciais. Isso as torna imprescindíveis, especialmente em países como o Brasil, onde televisão sempre foi sinônimo de empreendimento privado.
A tecnologia e a arte
Na luta pela criação e consolidação de uma TV pública de qualidade por aqui, lembrar Beckett transforma-se em ação política. É a demonstração cabal de que o meio não é intrinsecamente alienante e superficial. Mas, para tanto, faz-se necessário conhecer de forma aprofundada essa experiência histórica, o casamento de um dramaturgo conciso e minimalista com um meio utilizado, quase sempre, de forma verborrágica e espalhafatosa.
Pela primeira vez temos um relato e uma análise, em português, dessa incrível aproximação. A proeza coube à pesquisadora brasileira, hoje trabalhando na Universidade do Algarve, em Portugal, Gabriela Borges. Seu livro A poética televisual de Samuel Beckett é um achado. Resulta de quatro anos de pesquisa percorrendo os caminhos trilhados pelo dramaturgo irlandês ao longo de sua vida intelectual, mas fechando o foco sobre a presença dele na TV.
A autora parte de uma introdução ao diálogo de Beckett com vários meios de expressão artística, centrando atenção no uso experimental que ele faz da palavra na literatura, do som no rádio e da imagem e do som juntos na TV. Segue analisando o momento conjuntural em que se deu essa produção, aproveitando, como ela mesma diz, ‘para discutir a televisão como meio de comunicação de massa e forma de expressão artística’.
Nos capítulos seguintes, analisa os aspectos estéticos das produções, as formas como peças originalmente criadas para o teatro se transformam ao chegarem à televisão e, finalmente, como se dá a relação entre a tecnologia e a arte na ‘elaboração da poética de Samuel Beckett’.
Incentivo a roteiros originais
O livro, como se vê, permite diferentes entradas para o leitor, da semiótica à ciência política. A primeira contamina um pouco o texto, mas a autora consegue escapar quase sempre de seu hermetismo propiciando uma leitura fluente e agradável. Um dos pontos altos da pesquisa é a análise conjuntural da chegada de Beckett à TV. Depois das produções literárias, teatrais, radiofônicas e cinematográficas, restava o meio mais recente e ainda inexplorado. As peças para o rádio já o haviam colocado dentro da BBC, mas talvez apenas isso não tivesse sido o suficiente para que os espaços na pequena tela lhe fossem abertos.
A autora mostra a importância das mudanças de rumo verificadas na corporação a partir da publicação, em 1962, do relatório do Comitê Pilkington, instituído pelo Parlamento britânico para analisar a situação da TV no país, seguindo uma prática de acompanhamento público da radiodifusão que se estendeu de 1926 a 1987. Depois de dois anos de trabalho, o documento final apontava a necessidade de dar maior liberdade criativa aos escritores para possibilitar o surgimento de outras experiências audiovisuais. Propunha ainda a criação de um segundo canal público de TV, a BBC 2, com a missão de incentivar os dramaturgos a escreverem roteiros originais, voltados especificamente para a televisão. Um deles foi Beckett.
‘Um fantasma que assombra a televisão’
Diferentemente do que ocorreu no Brasil, onde a TV surgiu e cresceu como herdeira do rádio, ou nos EUA, onde a herança vinha do cinema, na Inglaterra as raízes estavam no teatro. Desde as suas primeiras transmissões, no final dos anos 1930, a televisão britânica mostrava peças ao vivo, como lembra a autora. E dava ‘os primeiros sinais do que seria a construção de uma estética própria’. Beckett, ao que tudo indica, apaixonou-se por esse desafio, tanto é que, em 1986, numa entrevista citada no livro, afirma ‘que estava muito mais interessado em trabalhar com o meio televisivo do que com o meio teatral, porque aquele meio apresentava mais possibilidades de expressão’. O que permite concluir que, se a inspiração de Beckett para a televisão foi o teatro, suas obras nunca foram uma simples transposição de um meio para outro. Ao contrário, ele procurou utilizar todos os recursos tecnológicos disponíveis, naquele momento, para criar uma dramaturgia exclusivamente televisiva.
Quem vê, por exemplo, um dos episódios de Quad (disponível na internet) pode perceber o domínio de Beckett sobre o processo de captação de imagens com diferentes câmeras, a edição ágil, o uso do som e da luz como recursos fundamentais de linguagem, sem, no entanto, abrir mão da provocativa ambiguidade com que captura a emoção do espectador reunindo num pequeno quadrado quatro personagens em constante desencontro e temor. São trabalhos veiculados na chamada Idade de Ouro da televisão britânica, de 1965 a 1975.
A mesma época em que Londres recebeu o título de the swinging city, a cidade da moda, centro do mundo cultural e artístico do qual faziam parte não só os Beatles, os Rolling Stones, sir Laurence Olivier e Mary Quant, mas também Beckett e seus desafiadores programas de televisão. É nesse quadro que precisam ser entendidas as peças televisivas daquele que foi considerado um dos fundadores do teatro do absurdo. Nesse sentido, a autora é generosa com o leitor. Mostra a moldura e vai a fundo no conteúdo da obra, dissecando cada uma das criações de Beckett para a TV com muita competência. Analisa roteiro a roteiro, linha por linha, num trabalho que passa a ser, a partir de agora, referência básica para os estudos e a prática da produção televisiva de qualidade no Brasil. A própria autora diz, depois de analisar Ghost Trio, ser ‘possível argumentar que Beckett, como seus personagens, é um fantasma que assombra a televisão. Ainda hoje, as suas telepeças continuam a questionar o papel da televisão na sociedade contemporânea, principalmente no que diz respeito ao modo como ela enquadra o mundo e conta suas histórias’. Concordando com essa afirmação, só nos resta pedir que esses fantasmas ocupem rapidamente o insípido universo televisivo brasileiro, sacudindo-o como Beckett fez com a televisão inglesa no meio do século passado.
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Jornalista, professor da ECA-USP e ouvidor da Empresa Brasil de Comunicação