Em agosto de 1975, este observador era estudante de jornalismo na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), em São Paulo, e recebeu uma tarefa, juntamente com uma colega de classe: entrevistar o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, Paulo Vidal Neto. Se Vidal não estivesse disponível, deveríamos conversar com Nélson Campanholo, também integrante da diretoria.
Tudo tinha sido arranjado por um tal Frei Chico, que mais tarde soube tratar-se não de um religioso, mas de um importante quadro do Partido Comunista Brasileiro no movimento operário. Era uma tarefa escolar na qual se empenhavam com muito interesse alguns professores ligados ao PCB.
Desde 1974, quando os metalúrgicos do ABC haviam definido, no 1º Congresso dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, que haveria uma guinada na antiga política assistencialista – e que eles iriam, sim, questionar o modelo de organização sindical imposto pela ditadura –, o PCB vinha tentando consolidar sua influência entre os operários, de olho no espaço político que, em sua avaliação, haveria de acontecer com o processo
de abertura proposto pelo presidente Ernesto Geisel.
Nosso contato no PCB, que mais tarde seria excomungado por toda a esquerda ao aceitar um cargo no secretariado de Paulo Maluf, costumava dizer que ‘a abertura do general
Geisel é lenta e gradual, mas é segura’.
Minha companheira de entrevista não estava envolvida no projeto do partidão. Eu tentava honrar a herança de meu pai, que havia sofrido, por suas ligações com o PCB, perseguições e outros danos que nunca nos revelou e, portanto, não posso comentar. Mas não me sentia confortável sob aquela disciplina que nos fazia partilhar a história a partir de células tarefeiras, sem acesso à visão geral do cenário político. Tinha um temperamento avesso ao centralismo. Além disso, eu discordava de que o processo de abertura pudesse ser ‘lento, seguro e gradual’, como diziam os camaradas mais qualificados.
Mas fomos à entrevista.
Aborreço o leitor com essas reminiscências por duas razões: o jornalista Paulo Markun está para lançar um livro sobre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao qual falta este pedaço; o governo Lula está começando agora, com o novo ministério, e o observador percebe que a imprensa não está cuidando que esse governo foi planejado em 1975, instalado em 2003 e reinaugurado no final de janeiro de 2004.
Para observar a atuação da imprensa neste futuro imediato, creio que precisamos considerar aquele passado de quase 30 anos. Caso contrário, vamos permanecer patinando no varejo das declarações e das intrigas, e mais uma vez a mídia estará faltando ao seu dever de oferecer ao leitor uma visão dos fatos que lhe permita vislumbrar a História em cada dia.
Começa o jogo
Voltemos a agosto de 1975. Na nova sede do sindicato, alguém nos informou que desde o primeiro semestre Paulo Vidal já não era presidente do sindicato Em seu lugar havia assumido um tal Luiz Inácio da Silva, a quem chamavam Lula. Era o irmão menor de Frei Chico. Não teríamos a conversa com Paulo Vidal, mas nem houve tempo para decepção. O jovem dirigente disse, logo de início, que aquela seria sua primeira entrevista como presidente do sindicato na qual falaria sobre questões nacionais. Começou dizendo que, desde o ano anterior, os metalúrgicos do ABC consideravam que a luta econômica pura e simples não seria suficiente para alcançar os objetivos da categoria. Questionou os indicadores econômicos do governo militar, rechaçou qualquer tutela de partidos e afirmou que os trabalhadores um dia chegariam ao poder pelo voto.
Nossas anotações foram diligentemente editadas e entregues ao professor e, por conseqüência, à direção do PCB. Desde o começo do ano, as forças de repressão vinham desmantelando as gráficas do partido e nossa entrevista nunca chegou a ser publicada. Mas lembro bem de uma frase do metalúrgico: ‘A ditadura vai cair porque é baseada numa visão burra do Brasil’. Lembro-me também de conceitos, fragmentos e convicções que foram sendo explicitadas e concretizados ao longo destas quase três décadas. Lembro que ele as repetiu em 1980, quando foi libertado após um mês de prisão no Dops, e que havia dito as mesmas coisas nas assembléias memoráveis no Estádio de Vila Euclides e na sitiada igreja matriz de São Bernardo do Campo, com repórteres e metalúrgicos cercados e espancados pela polícia.
O tal Lula nunca aceitou a tutela do PCB ou de qualquer outro partido. Sempre manteve como prioridade a autonomia do movimento sindical, exatamente como havia declarado àqueles dois estudantes de jornalismo em 1975. Deixou que se aproximassem dele muitos intelectuais de esquerda, religiosos e jornalistas, ilustrou-se com suas idéias e seguiu adiante. Alguns deles não escondem o ciúme e a frustração por não haverem sido adotados como mentores e volta e meia promovem seminários ou publicam artigos para destilar seus ressentimentos. Certa imprensa os agasalha como se fossem os donos da verdade, e seguem, universidade e imprensa, seus caminhos paralelos à realidade.
Na vida real, o metalúrgico virou presidente da República e declarou que usaria o primeiro ano para retomar a governabilidade, ameaçada pelas especulações (alimentadas pela imprensa) que acompanharam sua trajetória no final de 2002 rumo ao Palácio do Planalto, e recuperar para o país a credibilidade internacional. Foi o que fez. Compôs uma aliança impensável em 1979, quando se arrastavam as infindáveis reuniões para a criação do partido. Dos que se haviam agregado à sua biografia, segue grudado a ele o advogado mineiro José
Dirceu de Oliveira e Silva, um dos principais articuladores do Partido dos Trabalhadores e seguramente o companheiro que melhor conhece o pensamento de Lula.
O presidente acaba de reformar o ministério e fez de Dirceu uma espécie de primeiro-ministro. Os aliados foram colocados num círculo periférico do governo, próximos o suficiente para serem observados mas efetivamente fora do chamado núcleo duro do poder. O jogo de Lula presidente começa agora. Alguns especialistas – e são raros, dada a ausência, no Brasil, de observadores independentes da cena política – alertam os interessados de que o que se vai assistir é a um jogo completamente diverso do que se viu até aqui.
Atolado no varejo
Lula tem uma agenda criada em 1975 e amadurecida na dura realidade do operário, ao contrário do ex-presidente Fernando Henrique, cujo programa nasceu de uma composição entre as planilhas de economistas da PUC-Rio e sua próprias convicções acadêmicas. José Dirceu não é Pedro Parente. O chefe da Casa Civil do governo anterior era um sujeito paciente, o atual é um bulldozer. O governo que se inaugurou na última semana de janeiro é uma raridade na história do Brasil: é um governo partidário, cujo programa está escrito no programa de um partido fundado sobre uma agenda criada por trabalhadores no auge da ditadura.
Christopher Garman, especialista em Brasil da Tendências Consultoria, bastante acreditado junto à Câmara Americana de Comércio, notou que o governo Lula se tornou mais centralizado após a formalização da aliança com o PMDB, com um aspecto aparentemente mais centrista que dissimula o firme propósito de realizar reformas e tomar ações efetivas no campo social. Os primeiros artigos, editoriais e reportagens da grande imprensa brasileira ainda ressoam avaliações cujos fundamentos ficaram para trás, em 2003.
Garman observa que a mudança aumenta a margem de manobra do governo para a realização de reformas. Se ele está certo, é bom lembrar que no comando do trator está José Dirceu. ‘Do ponto de vista do investidor, essa nova dinâmica faz toda diferença do mundo’, diz o analista.
Na grande imprensa nacional, não se tem observado mais do que tentativas de ‘enquadrar’ o principal executivo do governo em um perfil reconhecível. As declarações de José Dirceu sobre a chamada ‘lei da mordaça’ e suas manifestas convicções em favor de maior controle da mídia ainda não mereceram o cuidado necessário. Com certeza, suas atribuições à frente da principal tarefa de governo – a consolidação das reformas e a concretização dos anunciados programas sociais – não lhe deixarão tempo para tratar de impor à imprensa seu modelo pessoal de autonomia. Mas é inegável que, a persistir a ligeireza com que os jornais têm tratado as últimas mudanças no governo, não nos resta muita esperança de contar com boas fontes para entender este importante trecho da nossa história.
O metalúrgico que surpreendeu dois estudantes de jornalismo em 1975 vai fazer exatamente aquilo que vem anunciando desde então. Quando anuncia que acabou a era do ‘achismo’ e começou o tempo do ‘eu faço’, Lula disse justamente isso: que vai fazer aquilo que é seu propósito desde o início.
Sua biografia não lhe deixa alternativa. Por enquanto, o noticiário está atolado no varejo e na repetição de velhos preconceitos. O risco que corremos é o de não podermos contar, nos arquivos que vão registrar esta história, com uma contribuição relevante da imprensa.
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(*) Jornalista