A partir de meados dos anos 1990, devido à urgência de se discutir os vínculos entre capital, ideologia e mídia numa era em que esta se tornara peça-chave do capitalismo tecnofinanceiro, acirra-se, em âmbito internacional, a prática e o debate em torno da crítica de mídia.
No mais das vezes ancorada num questionamento ético, num primeiro momento a ênfase crítica recai na análise dos conteúdos veiculados pelos diversos órgãos de mídia – notadamente, a imprensa. À medida em que se evidencia, em parte graças ao trabalho de pesquisadores como Ben Bagdikian, César Bolaño e Dênis de Moraes, a tendência ao monopólio e, via fusões empresariais, à concentração corporativa dos grupos de comunicação ganham força, no media watching, veios críticos mais interessados nas relações econômicas estruturais da atividade midiática.
Só mais tarde os efeitos negativos advindos da omissão ou da desconsideração de informações por parte dos veículos de comunicação passam a receber, de forma mais sistemática, a devida atenção por parte dos críticos de mídia. O ato de desconsiderar informações, deixando de publicá-las ou fazendo-o com mínimo destaque – que já vinha recebendo atenção sistemática da academia desde os anos 1940 –, passa, então, paulatinamente, a ser considerado uma das principais e mais nocivas estratégias para manipulação da opinião pública.
Greves escondidas
Um tipo de manifestação social que, pela sua própria lógica anticonformista e, em variados graus contestadora, tem sido reiteradamente negligenciada pela cobertura midiática, é a greve trabalhista – notadamente, no Brasil, quando protagonizada pelo funcionalismo público, a besta-fera do ideário neoliberal. É precisamente esse o caso da greve – e das manifestações – dos professores da rede oficial de ensino do estado de São Paulo, vigente desde o dia 8 de março.
De início, a estratégia adotada pelos dois principais jornais do estado foi de um quase silêncio, que só não zerou os decibéis por conta de pequenas notas de utilidade pública (do estilo ‘não mandem seus filhos à escola, pois a greve começou’) noticiando o evento e, de forma breve e tendenciosa, apresentando um insatisfatório resumo da escalada do conflito. Segundo tal narrativa, o movimento seria uma manobra sindicalista perpetuada por uma minoria insatisfeita. Na origem do mal-estar estaria a insatisfação dos professores temporários, revoltosos por terem sido obrigados a se submeter a uma avaliação funcional para se manterem empregados.
Trata-se de uma manobra narrativa eficiente, porém ‘manjada’: utiliza-se uma inverdade anterior para sustentar a distorção atual dos fatos. Houve, de fato, a aplicação de uma prova e o desempenho global dos professores foi mesmo pífio. Porém, o que a ‘grande’ imprensa paulista sempre escondeu é que tal resultado se deveu, em larga medida, ao boicote que muitos professores promoveram, comparecendo ao local de prova, mas se recusando a responder às questões. Tal como fazia em relação ao Provão dos tempos de FHC, a mídia não registrou esse ‘detalhe’, preferindo tão-somente desmerecer o nível educacional do professorado. Seria mais honesto se ela abertamente questionasse a atitude dos professores, mas isso poderia dar ensejo a respostas que ela muito provavelmente não estaria interessada em publicar.
Insistência em desqualificar movimento
O silêncio da imprensa paulista tornou-se insustentável após a primeira passeata dos professores na Av. Paulista, no dia 12 de março. O evento reuniu uma tal multidão (6 mil para a PM; 60 mil para os organizadores) e repercutiu de uma tal maneira na internet que ficou difícil fingir que nada estava acontecendo e ignorar a greve e os protestos. A partir desse momento, a atitude do Estado de S.Paulo e da Folha passa de uma não-cobertura a um enfoque que privilegia os transtornos no trânsito que as passeatas estariam provocando, bem como a ênfase nas consequências negativas do movimento para os alunos e para as mães, que não teriam onde deixá-los.
Todos os temas elencados acima são importantes e teriam obrigatoriamente de ser levados em conta numa boa cobertura jornalística da greve. Mas, na hierarquia da notícia, eles deveriam ocupar patamares inferiores, consequências que são do estopim de uma situação insustentável para o ensino paulista e para seus profissionais, a qual levou estes à greve. Esta é a notícia, pois fato jornalístico novo. As razões e desrazões da paralisação, seguidas das causas que a provocaram ocupariam, numa cobertura profissional de alto nível, o centro do interesse jornalístico.
Porém o que se vê agora é o contrário de uma boa cobertura: desde o sábado (13/3), quando, de forma um tanto surpreendente, o Estadão publicou meia página sobre a segunda passeata na Paulista, parece tomar forma uma outra estratégia em relação ao movimento: a insistência na tentativa de desqualificá-lo questionando as origens, afiliações e motivos dos que dele participam.
Ojeriza por reivindicações trabalhistas
Trata-se de uma prática tão antiga como o trabalho escravo: ante a evidência de que trabalhadores conseguiram reunir uma multidão para reivindicar, de forma organizada, suas demandas, faz-se um uso político dos excluídos sociais, evocando-se a presença de baderneiros, infiltrados e marginais como forma de subtrair representatividade do protesto. Tal estratégia já extrapolou os limites da imprensa e assomou ao rádio, onde figuras folclóricas do moralismo populista – incluindo o cronista esportivo Flávio Prado – bradam contra a suposta ‘impureza’ da manifestação dos professores.
Desnecessário mencionar que há um forte componente eleitoral por trás do comportamento dos dois diários paulistas, ambos com forte ligação com o atual governador de São Paulo e provável candidato do PSDB à presidência, José Serra (PSDB-SP). Afinal, ele é o beneficiário direto dessa má vontade jornalística para com a greve dos professores.
Mas, no caso em questão, convém não superdimensionar a ênfase eleitoral. Houve também, ao longo da presidência de Luiz Inácio Lula da Silva, longas greves em áreas importantes da administração federal – como a Ouvidoria e a Previdência Social –, e a imprensa refreou seus ímpetos e demonstrou desinteresse semelhante ao de agora.
Pois acima de seus eventuais interesses político-eleitorais, impõe-se a verdadeira ojeriza que a grande imprensa paulista alimenta por reivindicações trabalhistas, ainda mais se advindas do setor público.
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Jornalista, cineasta e doutorando em Comunicação pela UFF; seu blog