Quando – sem autorização judicial – a Polícia Federal prendeu na semana passada o homem da cueca, nenhum comentarista, muito menos algum político, pôs em duvida a legalidade do ato.
Ontem a juíza que mandou soltá-lo disse que “ninguém é obrigado a andar com a declaração de renda” para provar a origem do dinheiro que traz consigo.
Do seu despacho: “No que tange especificamente à moeda, embora possa ser utilizada para o cometimento de infrações e por vezes seja até seu corpo de delito, não existem, no caso em apreço, indícios suficientes a ensejar tal presunção, nem relação aos crimes pelos quais o peticionário foi autuado…”
Mas o mundo veio abaixo com a prisão – pedida por um procurador de Justiça – da dona da Daslu e com a apreensão – autorizada por mandado judicial – de documentos na sua loja para investigar sonegação de impostos e contrabando de mercadorias.
Do procurador, ao mandar soltar a senhora Tranchesi: “A prisão era necessária para evitar sumiço de provas. Como tudo foi apreendido, deixou de ser necessária.”
Admita-se, para argumentar, que o procurador agiu com excesso de zelo: se a PF já estava na Daslu, como é que dona Eliana poderia sumir com as provas?
Mas a indignação – seletiva – contra a ação policial chegou às raias do absurdo. No Congresso, onde o senador Antonio Carlos Magalhães chorou lágrimas de esguicho, como diria Nelson Rodrigues, e foi se queixar ao ministro da Justiça, o seu companheiro presidente do PFL, Jorge Bornhausen, falou em “atentado ao mercado”, “crise econômica potencial” – e ‘protoditadura’.
‘Impossível pagar todas as taxas’
Em São Paulo, onde a palavra pirotecnica corria pelos Jardins, o presidente da Fiesp, Paulo Skaf, subiu nas tamancas: “Não podemos aceitar que a sociedade seja tratada como bandida.”
Seguramente, ele usava a palavra sociedade à moda antiga, quando a sociedade, em sentido sociológico, era dividida assumidamente em duas: a “boa sociedade” e o resto.
A empresária Cecília Neves foi mais longe: culpou o governo pelas falcatruas que tudo indica terem sido cometidas continuadamente pela Daslu. Disse ela: “[O Brasil] é um país de altos impostos, e é impossível pagar todas as taxas. Alguma não deve ter sido paga.
Na Folha, o colunista Gilberto Dimenstein, profissional e homem íntegro, a meu ver se equivocou no artigo “Euforia equivocada”.
Ele gastou quase a metade do seu texto para dizer que a Daslu não é causadora de desigualdade, mas é apenas a sua consequência. Logo, “se nós fôssemos condenar os empresários usando como critério o acesso de seus produtos entre os mais pobres teríamos de colocar na lista teatros, cinemas, restaurantes, salas de concerto, hotéis de cinco estrelas”.
Mas quem mandou a PF fazer uma devassa na Daslu não a tem por suspeita de causar desigualdade, mas de fraudar o Fisco. O estabelecimento também teria burlado a legislação trabalhista, mas essa é outra história.
E se as denúncias contra a loja forem comprovadas, ela terá de ser expurgada da companhia dos empresários que, segundo Gilberto, “estão gerando empregos e impostos”.
Não penso que a Daslu foi transformada em “bode expiatório”. Mas acho difícil digerir a santa — e, repito, seletiva — ira que escoa das entrevistas com a gente fina condoída com o que se passou na loja onde a gentalha nem entrar pode.
P.S. Por falar em direitos e em Polícia Federal. O professor de Filosofia Roberto Romano foi citado hoje na Folha [texto reproduzido no blog do Noblat], como tendo dito que ‘presidente não tem vida privada. Além do mais, enquanto ele reclama privacidade, a PF invade escritórios e prende pessoas sem que elas ao menos tivessem tido a possibilidade de pedir um habeas corpus igual ao do Marcos Valério’.
Presidentes têm, sim, vida privada – e essa deve ser tão indevassável quanto a dos professores de filosofia, jornalistas e blogueiros. Mas o negócio dos filhos de Lula com a Telemar, que foi o que o levou a se queixar de não tê-la, faz parte – por extensão das funções do pai – da esfera pública.
Basta perguntar: a tele teria posto R$ 5 mi na firma dos irmãos Silva, se o progenitor Luiz Inácio fosse, digamos, torneiro-mecânico? O princípio da mulher de César vale para toda a família dele – e para todos quantos se associem a qualquer de seus membros. É nisso que o professor deveria ter posto o dedo.
Já a referência à PF e a Marcos Valério é samba do crioulo doido. A PF ‘invade escritórios e prende pessoas’ com mandado judicial. Elas só não seriam presas se tivessem pedido e obtido um habeas-corpus preventivo. Que foi o que o advogado de Valério o aconselhou a fazer para não ser preso por desacato à CPI, quando se negasse a responder às suas perguntas. Correta uma coisa, correta a outra.
Por que me ocupo disso? Porque o clima no país já está bastante carregado e as pessoas suficientemente perplexas para se ficar atirando sem saber direito no quê. [15h15 de 14/7.]