Este post é a primeira parte da minha participação no seminário ‘Imprensa e Direitos Humanos na América Latina’, ocorrido em Madri, na semana passada. Foram quase duas horas e meia de palestra e resposta às perguntas dos estudantes da Escola de Jornalismo mantida pelo jornal El País e pela Universidad Autônoma de Madrid. O tempo excedeu o horário pré-determinado devido, principalmente ao enorme interesse e desconhecimento do que é o Brasil para a maioria dos participantes do evento.
Minha missão era apresentar um panorama sobre o poder político dos meios de informação da América Latina e sua influência na defesa e preservação dos direitos humanos. Publicar todo o texto que serviu de guia para a palestra seria contraproducente e cansativo demais para os leitores. Para diminuir esses riscos, o guia foi dividido em três partes – ‘Fome e imprensa na América Latina’, ‘Imprensa e sociedade na América Latina’ e ‘Imprensa, um poder familiar na América Latina’ – , que serão publicados em dias alternados, a partir de hoje, para propiciar a eventual participação dos leitores.
Na transposição do texto falado para o escrito, foram suprimidos definições e detalhes de várias menções, entre elas a da criação e dos objetivos deste Observatório da Imprensa, que se encontram na barra superior desta página.
‘Como vocês têm ouvido nas palestras deste seminário, é longa a história de injustiças na América Latina. Eu tratarei de acrescentar ao que foi dito a visão de um jornalista que vem de um país onde a principal agressão aos direitos humanos é a pobreza em todas as dimensões sociais que uma pessoa pode imaginar.
Gostaria de dizer, que, ao final dessa exposição, ficarão mais perguntas do que respostas – o que não deixa de ser um excelente exercício para o jornalismo – e a constatação de que vários dilemas e problemas da imprensa latino-americana são os mesmos da Espanha e de outros países do primeiro mundo. A transformação gerada pela eletrônica e pela convergência dos meios foi – e continua sendo – dramática para a produção e difusão de produção jornalística em todas as partes. De um lado, temos a inovação permanente dos recursos de comunicação e distribuição eletrônica que ainda parece longe de fechar os ciclos de desestruturação e reestruturação do trabalho dos jornalistas e das empresas de comunicação. A Internet rouba, todos os dias, milhares de leitores dos jornais impressos, e já não faltam previsões, inclusive com datas, do fim definitivo dos jornais de papel, que ocorreria no ano de 2040. Do outro lado, pelo menos no que se relaciona à América Latina, temos raros exemplos de liberdade total de expressão jornalística, limitadas na origem pelos baixos salários e oferta restrita de trabalho. Nos anos das ditaduras militares, havia a censura oficial e vigia um acordo tácito entre empresas e profissionais para enfrentá-la. Hoje, vigoram a autocensura e a censura patronal.
Outro ponto que eu gostaria de destacar é que o conceito de jornalismo solidário, tema central de várias palestras desse seminário, ainda não é compreendido no Brasil com o mesmo alcance que tem na Europa. Quando escutei essa expressão pela primeira vez, em fevereiro passado, fiz uma consulta ao Google em português e encontrei apenas uma referência – a de um concurso para jornalistas que haviam se destacado com reportagens sobre o problema da droga, patrocinado pelo governo do Estado do Paraná, da região Sul do Brasil.
Pessoalmente, porém, creio que a expressão jornalismo solidário é, de certa forma, redundante, porque a prática diária do jornalismo, conforme consta nos propósitos do Observatório da Imprensa, pressupõe o exercício permanente da solidariedade – uma das razões que torna a prática do bom jornalismo em uma das mais nobres profissões.
Devo antecipar, por fim, que minha abordagem será obrigatoriamente sucinta porque cada um dos 35 países latino-americanos tem suas complexidades e particularidades que, detalhadas, levariam muito mais tempo do que está previsto para essa exposição. Além da diversidade, a América Latina tem outros universos dentro de suas fronteiras oficiais. Mas, em cada um dos países, e em diversos graus, há sempre a mesma dicotomia que separa o mundo dos mais ricos do dos mais pobres. Dentro desses mundos que convivem separados dentro do mesmo espaço, estão descendentes de escravos da África e de imigrantes de quase todas as partes do mundo. Todos, com exceção dos escravos e das nações indígenas que viviam ali antes da chegada de Colombo, migraram com o sonho de dias melhores, com a mesma esperança que mobiliza hoje cerca de 200 milhões de imigrantes em todo o mundo em busca de um lugar com menos restrições ao direito de terem uma vida mais digna do que seus lugares de origem.
Dentro do mosaico de países, nações indígenas e minorias que formam a América Latina, meu país detém várias singularidades, além de ser o único de fala portuguesa, o maior e o mais populoso. Mas a singularidade mais importante do Brasil é a mistura da sua gente, que supera não apenas os cruzamentos de raças observados na América Latina, mas de todos os demais países do mundo. Poucos povos na história mesclaram-se como nós e respeitáveis pensadores brasileiros, como o falecido professor, escritor e fundador da Universidade de Brasília, Darcy Ribeiro, defendem a tese de que essa diversidade genética é a contribuição mais importante do Brasil à humanidade.
O Brasil também é exemplo de convivência pacífica de raças, inclusive as que guerreiam em seus países de origem. Em São Paulo, a maior cidade do Hemisfério Sul, por exemplo, judeus e árabes já saíram às ruas em manifestações pela paz no Oriente Médio. Mas, apesar desse desejo de harmonia, da euforia do Carnaval e da alegria das pessoas com o nosso futebol, somos uma das sociedades mas injustas dos tempos modernos.
A miséria é um problema estrutural da América Latina desde os tempos coloniais, onde uma minoria ocupa o topo da pirâmide social e é dona da maior parte das terras e da riqueza gerada pelos recursos naturais, minerais e pela indústria. Essa desigualdade piorou nas três últimas décadas de vendavais inflacionários e ataques especulativos contra as moedas nacionais, como demonstram as crises financeiras do México, Argentina, Brasil e Chile, para citar as mais significativas e de maior repercussão nos mercados financeiros. Felizmente, a espiral inflacionária que consumia o dinheiro do assalariado e fazia crescer as fortunas dos que já tinham muito parece ter se acomodado. Mas o constrangimento aos direitos básicos do bem-estar – comer, dormir, produzir, descansar, educar-se, ter acesso à saúde básica e divertir-se – continua pressionando.
Para demonstrar a desigualdade econômica que aflige os direitos humanos mais elementares, começarei a apresentar alguns indicadores do meu país. No ano de 2003, segundo está documentado no texto do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, o IDH, Índice de Desenvolvimento Humano, do Brasil apontava que quase a metade da renda nacional – 46,9% – estava nas mãos dos 10% mais ricos e os 10% mais pobres tinham apenas 0,7% da renda nacional.
O instituto oficial de pesquisas e estatísticas do Brasil, IBGE, confirma essa barreira entre os muito ricos e os muito pobres com outros números: 7 milhões de pessoas ganham mais do que dez salários mínimos, o que equivale a € 1.150 por mês; 15 milhões ganham entre cinco e dez salários mínimos, ou entre € 575 e € 1.150 por mês, e 101 milhões ganham até cinco salários mínimos, ou € 575 por mês. Vocês poderão pensar que € 1.150 por mês é um montante demasiado baixo para classificar alguém como rico, e seguramente estão certos pensando em planos europeus. Mas o que ressaltam os números do instituto oficial de pesquisas brasileiro é que dos quase 186 milhões da população total, apenas 7 milhões ganham mais do que essa quantia.
Esses números escandalosos classificam o Brasil como o oitavo país mais desigual do mundo, tendo à sua frente seis países africanos de economias destroçadas por guerras civis e um país centro-americano, a Guatemala, que enfrentou 36 anos seguidos de guerra civil na segunda metade do século passado, com 100 mil mortos e um milhão de refugiados.
O Brasil, ao contrário, não tem conflitos armados de massa em seu território desde o final do século 19, na Guerra do Paraguai.
Esses números sustentaram uma das promessas de Luiz Inácio Lula da Silva em sua campanha para a Presidência da República – a de que todos os brasileiros pudessem comer três vezes por dia. Pelo que pude depreender das conversas que tive com jornalistas durante esses dias de seminário, esse compromisso gerou impacto não só na campanha eleitoral de Lula, mas também aqui na Europa. Parte desse objetivo a que ele se propôs está sendo alcançado por meio dos programas sociais do governo federal. Atualmente, 12 milhões de famílias, ou cerca de 42 milhões de pessoas recebem subsídio governamental por meio do programa Bolsa Família, no qual estão reunidos todos os benefícios sociais. Isso quer dizer que 15% de todos os domicílios do país recebem uma ajuda de cerca de € 50 por mês. Para que esse dinheiro não seja desviado dentro da família, ele e entregue à mãe de família e não ao pai, para evitar que seja gasto em cachaça. Além dessa condição, a família beneficiada deve comprovar que as crianças da casa estejam matriculadas na escola e com seus boletins de vacinação em dia.
Eu estou dando para vocês todos esses detalhes para acrescentar que o programa é reconhecido como modelo pelo Banco Mundial, que já coordena sua aplicação no México, para um número ainda maior de pessoas – 14 milhões de famílias -, e estuda sua extensão para países miseráveis da África. Vejam só o alcance da simples idéia de dar pelo menos três refeições por dia para todos os seres humanos com fome. Com uma frase de efeito simples de sua campanha eleitoral, Lula pôs o tema da fome na agenda global. Em Davos, Suíça, por exemplo, onde se realiza o Fórum Econômico, há dois anos não se discute apenas oportunidades de investimento, mas também a fome. Pela primeira vez, esse flagelo recebe a atenção de países mais poderosos do mundo sem que tenha ocorrido antes catástrofes climáticas ou guerras civis.
Apesar da boa avaliação recebida no exterior, são quase diárias as críticas dos grandes meios da imprensa no Brasil ao programa. A mais comum é que o Bolsa Família é o principal instrumento da política populista e assistencialista do governo, porque os € 50 não tiram a família da pobreza, ou porque não leva infra-estrutura básica e de produção às comunidades atendidas. Outra, é que o dinheiro distribuído dificulta a obtenção do superávit primário de 4,5% do PIB, conforme consta no compromisso do Brasil com o Fundo Monetário Internacional.
Na raiz da oposição da imprensa manifestada em editoriais, artigos e reportagens está a indiferença diante de problemas cruciais da maioria da população. Essa mesma resistência em reconhecer a realidade bruta não se mostra apenas na imprensa do Brasil, mas, com menos ou mais intensidade, em todos os países latino-americanos. Para exemplificar, vou lhes contar três casos.
O primeiro inclui o mesmo Bolsa Família mencionado e a estratégia do silêncio dos grandes meios de informação diante das boas avaliações que o programa colheu no exterior. Esse silêncio foi mantido até setembro do ano passado, quando a revista britânica The Economist publicou a reportagem ‘Novas maneiras de tratar velhos problemas’, na qual afirmava que ‘a transferência de dinheiro vivo, com obrigações a serem cumpridas porque quem o recebe, é uma boa solução para ajudar os pobres do que muitos programas sociais anteriores, conforme mostram as experiências do Brasil e do México’.
Bem, tudo o que sai sobre o Brasil na The Economist às quintas-feiras na web, é repercutido no dia seguinte no Brasil e, às vezes, rende comentários ou reportagens no sábado ou no domingo. Mas com essa reportagem isso não aconteceu. Pior, nada aconteceu. Estranhamente, nenhuma palavra foi publicada. Nem sequer no principal jornal de economia do Brasil, o Valor Econômico, que detém os direitos de reprodução da Economist no Brasil, trouxe uma palavra sequer.
Eu, do meu blog Contrapauta, no Observatório da Imprensa, esperei quatro dias antes de apontar publicamente o silêncio, para não cair no erro da leviandade ou da crítica apressada. Vencido esse prazo, escrevi dizendo que minha intenção não era defender o governo e apontei o comportamento inédito dos grandes meios em ignorar a revista mais respeitável do mundo. A conclusão que apresentei foi que o silêncio havia sido proposital, pois não cabiam nas páginas dos jornais e revistas fatos positivos à imagem do governo de Lula, que, naquele momento, encontrava-se imobilizado pelas denúncias de corrupção envolvendo seu partido político, o PT, Partido dos Trabalhadores.
Três dias depois, começaram a ser publicadas notícias mais detalhadas nos grandes meios de informação. Em uma delas, do jornal O Estado de S.Paulo, um dos mais conservadores do Brasil, reforçava a conclusão de que o dinheiro se destinava às bases eleitorais de Lula no Nordeste, a região mais pobre do Brasil.’
(Continua)