Salvo por duas passagens – “Separou como ninguém o público e o privado”, de Carlos Marchi, no Estado, e “Discreta e avessa à invasão de sua privacidade”, em matéria não assinada no Valor – os necrológios da antropóloga Ruth Cardoso, nos principais jornais de hoje passaram ao largo de uma característica da personalidade da mulher do ex-presidente Fernando Henrique que mais de uma vez a indispôs com a imprensa.
Desde que ele começou carreira eleitoral, candidatando-se a prefeito de São Paulo em 1985, virar notícia era tudo que ela receava, sabendo que entraria no radar da mídia não por seus trabalhos acadêmicos, nem mesmo para falar dos movimentos sociais de que ela se tornou uma das primeiras pesquisadoras no país, mas por estar casada com uma figura em ascensão que se distinguia dos políticos convencionais.
Ruth abominava a idéia de adentrar o noticiário por essa porta lateral, não só porque tinha luz própria como intelectual, nem só por femininismo – foi ela quem criou na Universidade de São Paulo o Núcleo de Estudos da Mulher e Relações Sociais de Gênero. Mas principalmente por entender que, se contribuísse para a sua exposição na imprensa – não tendo ela mandato eletivo, nem fazendo parte de um governo – estaria ajudando a confundir o público e o privado, algo a que tinha horror.
Quando o marido virou presidente, por exemplo, o seu desconforto em ser chamada “primeira-dama” vinha menos do arcaísmo engomado da expressão, que não tinha nada a ver com a sua história e o seu temperamento, ou do que o termo contenha de rebaixamento do papel da mulher. Vinha principalmente de ela entender que “primeira-dama” soa ou como enfeite ou como uma espécie de cargo oficial.
O mais era a sua profunda aversão ao risco de se tornar qualquer coisa parecida com uma celebridade, repartindo com o grande público os seus gostos, hábitos e atitudes. Poucas vezes na vida ela terá ficado tão possessa como no dia em que viu no jornal uma foto, tomada às escondidas, em que ela aparece com filhos e netos à beira da piscina do Planalto.
O pior é que muitos jornalistas não entendiam as queixas de ‘dona Ruth’.
Já “ex-primeira-dama” e dirigente de Organização Não-Governamental, indignava-se com matérias, cujas falhas apontava uma a uma, que sugeriam que o chamado Terceiro Setor – o conjunto de ONGs em atuação no país – estava praticamente todo ele contaminado por práticas suspeitas e pela promiscuidade com o poder público.
Num seminário em São Paulo, em 2004, criticou implicitamente a imprensa quando apontou o fato de os críticos não enxergarem os controles já existentes sobre as atividades das ONGs, embora reconhecesse a necessidade de serem aperfeiçoados.
Na intimidade que buscava a todo custo preservar – custou a se acostumar a ser acompanhada por um, aliás uma, segurança -, era menos formal e mais divertida do que a sua persona pública. Certa vez, comentando numa roda a visita ao Palácio Buckingham, na visita de Estado do então presidente ao Reino Unido, disse que a rainha e as senhoras da corte que os receberam “pareciam minhas tias de Araraquara”.