‘Sei o que sentiram. Não é agradável para um jornalista escrever com alguém a vigiar por sobre o seu ombro. E certamente perguntaram: ‘Porquê ele?’ Que autoridade tinha eu, jornalista como vocês, para mais sem a cultura do PÚBLICO, para me pôr a criticar o vosso trabalho? Será que não pratiquei também erros idênticos enquanto exerci a profissão? Como me atrevia agora a apontar-vos o dedo?
Confesso que muitas vezes me coloquei no vosso lugar, ao denunciar faltas que eu no passado podia ter cometido ou deixado cometer. Imaginei-me aliás, em caricatura, na pele de Walter Burns, o obstinado director de jornal que na versão fílmica assinada por Billy Wilder da comédia The Front Page (Primeira Página, 1974), após um percurso repleto de golpes baixos para bater a concorrência na obtenção da cacha ou do exclusivo, acaba a sua carreira a ensinar ética jornalística na universidade.
Mas uma das vantagens do lugar de provedor é que podemos aprender com a função, obrigando-nos a assentar ideias sobre matérias acerca das quais, na lufa-lufa do quotidiano profissional, pouco havíamos ainda reflectido. E quanto à assunção do cargo confiei em quem em mim confiara ao convidar-me, detectando-me de algum modo perfil para o papel (espero que não tenha ficado desiludido). Verifiquei afinal, com agrado, que, na esmagadora maioria, vocês entenderam também dar-me o benefício da dúvida, já que, com raríssimas excepções, quiseram colaborar comigo dando resposta às questões que vos fui colocando (e podiam não o ter feito). Por isso vos estou grato, já que se tratou de uma ajuda preciosa para o desempenho do lugar.
Claro que houve atritos entre nós – mas sem eles eu consideraria insatisfatória a minha actuação como provedor. Entendo aliás ser inerente à actividade a diferença de pontos de vista entre escrutinador e escrutinado. Não reivindico ter tido sempre razão – considero até que não se trata tanto de ter razão, mas sim de encarar de formas diferentes a prática jornalística e o reforço da sua credibilidade (e não, nesta área do mercado o cliente nem sempre tem razão).
Posso mesmo, numa ou noutra ocasião, ter sido desmedido no grau de exigência ou praticado excesso de zelo – admito-o. Não percebi logo, por exemplo, a especificidade do jornalismo desportivo, reclamando um tratamento da arbitragem idêntico ao que os media independentes devem dar aos magistrados judiciais, sem aceitar que a observação directa ou o vídeo permitem com frequência o julgamento sumário do acerto das decisões arbitrais – a mão de Thierry Henry que levou a França à fase final do Mundial na África do Sul será sempre mão, mesmo que o juiz da partida não a tenha assinalado, e os jornalistas nunca a poderão escamotear (não abordei a questão na altura, é apenas um exemplo).
Mas, no caso que acabou por marcar este mandato de provedor agora no fim – a questão das notícias acerca da alegada vigilância de S. Bento sobre Belém –, continuo a julgar ter dito o que devia dizer: lançar um sério aviso sobre o que, procurando decidir em total independência e autonomia, entendi como desvio aos valores editoriais em que se fundou este jornal, um copo que eu via cheio há já algum tempo e que transbordou com essa enorme gota de água. Sei que muitos de vós se sentiram ofendidos no brio profissional quando questionei a existência no jornal de uma agenda oculta, mas não se tratava de pôr em causa toda a redacção. Só que numa orquestra afinada basta um dos seus elementos perder o tom (para mais numa posição de chefe de naipe ou de concertino), para que todo o conjunto desafine (imagine-se então se é o maestro a dirigir com outra partitura).
Tendo estudado com alguma profundidade o PÚBLICO ao longo destes dois anos e auscultado os anseios dos seus leitores, permito-me deixar-vos uma apreciação resumida dos principais problemas que detecto no jornal, condensados num conjunto de cinco recomendações apresentadas com a pretensão de contribuir, embora modestamente, para a sua evolução:
1. Pensar nos leitores antes de decidir a publicação de cada matéria. Julgo o PÚBLICO afectado por certo grau de presunção. Muitas das suas matérias e da sua linguagem são elaboradas em função da superioridade intelectual que os seus jornalistas julgam de bom tom manter, mas será que se interrogam por um momento sobre se estão a comunicar para o público generalista que é o conjunto de leitores do jornal (e que desejavelmente deveria alargar-se a camadas mais vastas)? Fará sentido ocupar três e quatro páginas com certos temas de reportagem ou entrevistas que pouco ou nada dirão à esmagadora maioria? Percebo que os fundadores do jornal tenham querido inscrever na sua matriz uma atitude vanguardista, capaz de se distinguir do convencionalismo de outra imprensa e de contribuir para o desenvolvimento cultural da sociedade portuguesa (e concordo até que esse seja um dos mais nobres objectivos dos media), mas será que uma vanguarda não acompanhada pela massa cumpre a sua missão? Acho que sim num projecto artístico ou literário, mas não num jornal diário, investimento demasiado dispendioso para se dar ao luxo de alienar o público que é a razão de ser da sua existência e da sua viabilidade económica. Nesse sentido deve também ouvir-se os leitores e incrementar a sua participação nas páginas do jornal, sobretudo agora que se tornou obrigatória a interactividade entre o público e os media de grande expansão.
2. Dosear a agenda entre temas de interesse público e de interesse do público. Esta recomendação decorre da anterior. O jornal pensa muito no que julga ser em prol da comunidade, mas pouco no que pode cativar a curiosidade dos leitores. Reflexo disso é, por exemplo, a escassa atenção concedida aos casos de polícia, entendidos como matéria sensacionalista excluída de investigação e desenvolvimento. O crime, momento extremo da condição humana, inspiração de monumentos que vão de Dostoieveski a Raymond Chandler, passando pos alguns dos momentos supremos do cinema, é tido pelo PÚBLICO como actividade menor. Não se trata de abordar ou não abordar, mas de como abordar. E nada do que é humano deve ser estranho a um diário generalista.
3. Cumprir as regras da produção jornalística, atender ao rigor dos factos e respeitar a língua. As normas profissionais não existem por capricho, mas porque reforçam a credibilidade dos jornalistas e dos respectivos órgãos de informação. Os factos consagrados (como os acontecimentos históricos, as datas, os nomes e os números) devem ser respeitados. Quanto à qualidade do vocabulário e sintaxe idiomáticos, os media podem ser o último reduto na sua defesa (embora entendida num sentido dinâmico e não estático), pelo que nesse campo cabem especiais responsabilidades aos jornalistas. Senti porém como baldados os esforços que procurei desenvolver nestas áreas. No domínio da técnica jornalística, preocupa-me sobremaneira o desrespeito pelas normas da citação de fontes de informação. O Livro de Estilo do PÚBLICO contém directivas que conviria respeitar melhor, mas dever-se-ia também pensar na sua própria actualização.
4. Considerar também a fotografia como elemento de informação. A edição fotográfica do PÚBLICO utiliza muitas vezes a imagem de forma conceptual (um detalhe, uma silhueta, uma sombra, uma mancha, uma forma geométrica, uma sugestão, um enigma), que terá tudo a ver com estética mas pouco com jornalismo. Não se devia desperdiçar tanto e tão precioso espaço para pouco ou nada informar os leitores. E também as legendas deveriam ser mais explícitas, dando conta das circunstâncias específicas das fotos a que dizem respeito.
5. Entender o PÚBLICO não como um jornal em papel com um site agregado mas como uma marca de informação englobando os mais diversos suportes. Enfrentem a realidade: os jornais generalistas estão sob ameaça de morte, e eventualmente já condenados. O público está a emigrar em massa para a informação via digital e não irá fazer marcha atrás. É certo que o PÚBLICO investiu já consideravelmente no PUBLICO.PT, mas não o suficiente, na medida em que, na estrutura organizativa da redacção e até em grande parte nos conteúdos, o site continua a ser tributário da edição em papel. Basta constatar que o próprio modelo gráfico do jornal, com títulos e fotos estendidos por páginas duplas, não se adequa ao seu visionamento através da internet. Teria de ser maior a aposta no on-line, pois reside aí o futuro. E não só: também noutros suportes digitais, já criados ou a criar. O PÚBLICO deveria por isso deixar de estar associado basicamente ao papel para se tornar, com toda a credibilidade que possui, numa fiável marca multimédia. A democracia precisará sempre do jornalismo, mas vai deixar de precisar dos jornais.
Considero que a minha actuação visou sobretudo procurar ajudar-vos a reflectir sobre vossa própria prática profissional. Se em alguma coisa contribuí para a sua melhoria, valeu a pena.
Votos de bom trabalho, em prol de um PÚBLICO cada vez melhor, e até sempre.’