Seria impossível pedir que a imprensa não especulasse sobre o futuro da candidatura Dilma Rousseff à presidência da República a partir do momento em que a ministra revelou estar em tratamento para prevenir a reincidência de um tumor linfático, como foi identificado o nódulo removido do seu organismo.
Afinal, a primeira pergunta que há de ter ocorrido a quem quer que soubesse que Dilma é candidata e ficou sabendo que ela tirou um câncer só poderia ser: e agora?
[Aliás, depois dos telejornais do sábado, devem-se contar nos dedos os brasileiros que ainda ignoram quem o presidente Lula gostaria que o sucedesse.]
Nada mais natural, portanto, que os jornais saíssem correndo atrás dos homens do presidente, dos políticos dos dois lados do balcão e dos cientistas políticos disponíveis no fim da semana para lhes perguntar: e agora?
Colheram, com as proverbiais exceções à regra, uma safra de platitudes e palpites.
Platitudes:
** Foi um bomba.
** A sucessão presidencial entra numa fase de incertezas.
** Tudo vai depender da reação da ministra à quimioterapia e dos resultados do tratamento.
** Mesmo que ela se saia bem e a candidatura se confirme, a possibilidade de que a doença volte ficará pendurada no ar durante a campanha.
** A escolha de seu eventual companheiro de chapa mudou de figura.
** Um presidente pode ter um vice com câncer. Um presidente que teve câncer não pode ter um vice qualquer.
** Para Lula, o PT e o PMDB, sem Dilma a sucessão volta à estaca zero.
Palpites:
** Dilma candidata se beneficiará de ter tido câncer.
** A oposição irá tratá-la com luvas de pelica.
** O eleitor irá se solidarizar com ela.
** A sua imagem de mulher durona vai ficar mais humana.
** A sua imagem de mulher forte vai ficar mais forte.
** Sem Dilma, a ideia de um terceiro mandato para Lula voltará para valer.
Vamos nos entender. Todos estão sujeitos a dizer lugares-comuns e dar chutes. Poucos, quando procurados pelos repórteres para comentar uma novidade quente, silenciam se só tiverem a declarar obviedades e fazer previsões a esmo. Ninguém gosta de passar por desinformado.
Mas a imprensa não precisa publicar tudo que ouve, quando o que ouve e um prato de abobrinhas são praticamente a mesma coisa. Quando publica, sobra para o leitor, que não precisa que alguém lhe diga, com a credencial de ser uma autoridade no assunto (do contrário, não estaria sendo entrevistado), o que ele pode concluir por si próprio.
Mas o pior não foi nem o espaço ocupado por essas não-notícias. Foi a decisão do Globo de decretar em manchete, na edição de domingo, que “Câncer e tratamento longo abalam candidatura Dilma”. Nada do que o próprio jornal publicou nesse dia, nenhuma informação, nenhuma suposição, suporta a teoria do abalo. Nem poderia, pela crassa razão de que é cedo para saber.
Foi o que ressaltaram, por exemplo, os colunistas da Folha Eliane Cantanhêde (“O imponderável”), no domingo, e Fernando Rodrigues (“Dilma e o câncer”), na segunda.
“Nunca se sabe o dia de amanhã”, escreveu ela. “Nem sobre a eleição de amanhã.”
“É ocioso especular”, escreveu ele, “como será a recuperação da ministra ou sobre sua disposição para a empreitada da eleição presidencial de 2010”.
Agora, notícia que é bom, só uma – e ainda assim no condicional. A repórter Vera Rosa, de O Estado de S.Paulo, apurou que Dilma “está tão otimista em relação ao tratamento” que admite “antecipar a saída do governo para janeiro de 2010 para se dedicar exclusivamente à campanha eleitoral”. [Pela lei ela teria de sair até 3 de abril, seis meses antes do primeiro turno do próximo ciclo eleitoral.]
Com isso ela compensaria a desaceleração forçada da construção de sua candidatura durante a quimioterapia.
Fonte: amigos não identificados da ministra com quem ela teria tido “conversas reservadas” no fim de semana. Pode ser, por parte dela ou deles, um balão de ensaio. De toda maneira, a repórter Vera Rosa é escolada no pedaço: ela cobre o PT desde o tempo em que o partido falava em mudar tudo isso que está aí.
Em tempo: os jornais registraram – e seria bom se viessem a comentar – que foi do presidente Lula a decisão da entrevista coletiva de Dilma, ao lado de seus médicos, no sábado. Pode ter sido por respeito à opinião pública, ou por um cálculo de conveniências, mas em matéria de jogo limpo foi um salto quântico em comparação com a farsa das versões oficiais sobre a doença do presidente-eleito Tancredo Neves, em 1985. Outro que joga limpo com o público, no mesmo departamento, é o vice José Alencar.
“Democracia 2.0”
Ocupada – ainda bem – em expor os podres do Congresso, a imprensa só de raspão trata das possíveis curas para a crônica moléstia moral que acomete a maioria dos deputados e senadores brasileiros.
E aí não dá outra: a salvação está na reforma política.
Du-vi-de-ó: a mudança das regras do jogo eleitoral – que é disso que se trata, no fundo – pode tornar os candidatos menos dependentes dos grandes financiadores das campanhas, por cima e por baixo dos panos, e aumentar a representatividade das casas legislativas. Mas nem por isso ela servirá para tornar os seus integrantes menos chegados a um privilégio ou a uma maracutaia com o dinheiro que recebem teoricamente para servir ao povo.
Mais eficiente seria pressionar pela divulgação permanente dos seus gastos, sustenta o professor (e veterano jornalista) Rosental Calmon Alves, da Universidade do Texas, em Austin.
Citado pelo colunista Merval Pereira, do Globo, ele chama a atenção para a coincidência da revolução digital com o movimento pelo acesso à informação pública – “a democracia 2.0”.
“As informações estão todas armazenadas nos computadores naturalmente”, observa. Sites brasileiros como Contas Abertas e Congresso em Foco, por exemplo, se valem disso para vasculhar o que os Poderes fazem com o meu, o seu e o nosso.
Mas, no Congresso, o armazenamento é parcial e tardio. E considerando que a instituição “se agarra a mordomias e se irrita com a divulgação de suas irregularidades”, como destaca Merval, há toda uma batalha a ser travada – pela imprensa em primeiro lugar – para forçá-la a tornar públicas as movimentações financeiras de seus membros em tempo real, ou quase isso.
Há 25 anos o Brasil perdeu, nessa mesma instituição, a batalha das Diretas Já. (Depois, o país deu a volta por cima.) Mas não está escrito nas estrelas que perderá também (e custará a dar a volta por cima) a batalha da Transparência Já.