Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O que Glauco não viu

No jornalismo, o mecanismo que define o que vai ser publicado/veiculado é chamado de gatekeeping. O gatekeeper é o responsável por escolher e elaborar critérios de edição como o fluxo do texto, a melhor imagem e os cortes nas falas. A repercussão do assassinato do cartunista Glauco Villas-Boas chama atenção para o ponto óbvio dessa prática e pouco discutido – a presença humana na condução desse processo passivo.

Busca-se no jornalismo, e mais ainda no telejornalismo (confronto de imagens), um distanciamento frenético do erro, estabelecido por uma divinização humana, inatingível e inútil.

Como em outras ocasiões, todas as matérias sobre o crime recaíram no erro íntimo de pré-julgar, causado pela presença de um objeto de análise distante, desconhecido e, no caso, uma religião não-católica. Quando o editor (gatekeeper) atua, junto está a formação religiosa, política e social. Tudo isso é somado ao processo que recebe influência, mesmo que inconsciente, e se transforma num círculo de orações particulares.

Subjetivismo demagógico

A aparente segurança na peça jornalística, neste caso, esconde no fundo uma fraqueza pertencente não apenas aos jornalistas, mas a todos os que desconhecem a existência do outro. Isso fica ainda mais claro quando se põe sobre a mesa a cadência das reportagens que relacionam o assassino transtornado à igreja Céu de Maria, fundada por Glauco e que tem como ritual o consumo do santo daime. A inquisição midiática chega ao ponto de convocar especialistas, um exército de psiquiatras e pesquisadores apontando o dedo sempre na mesma direção, a bebida alucinógena.

A mídia no Brasil mantém um sistema de análise que criminaliza tudo aquilo que convém. O despreparo de alguns jornalistas profissionais, ao invés de solucionar a problemática (formalizada neste caso pelo crime), semeia outro problema de natureza caótica, que eliminar o estranho (o outro) através do rebaixamento, da punição. O dramaturgo francês Antonin Artaud demonstra como essa ação pode ser encontrada na dança das cores:

‘(…) Se achamos que os negros cheiram mal, ignoramos que para tudo aquilo que não é Europa somos nós, brancos, que cheiramos mal. E diria mesmo que exalamos um odor branco. Assim como o ferro aquecido ao branco, pode-se dizer que tudo que é excessivo é branco; e para um asiático a cor branca tornou-se a insígnia da mais extremada decomposição.’

É preciso cuidado ao relacionar evidências para não dar espaço ao subjetivismo demagógico. No caso da morte de Glauco, o resultado é simples: o morto deixa de ser a vítima e passa a ser o autor. Ou que resultado pode se estabelecer numa lógica que liga uma bebida que entorpece a um assassino entorpecido?

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Jornalista