Os jornais brasileiros de primeira linha deram conta do recado ao destrinchar para quem vive deste lado do mundo as questões em jogo na eleição alemã de hoje.
O título da principal das cinco matérias da Folha sobre o assunto vai direto ao ponto: “Alemães decidem modelo de Estado na urna”.
Precisamente por isso vale a pena saber o que pode dar na Teutônia depois que forem às urnas aqueles dos 60 milhões de eleitores aptos a votar (numa população de 82 milhões).
“Modelo de Estado” é o que, no fundo, mais interessa a este Brasil campeão mundial da desigualdade social e detentor de índices de pobreza que deviam ser incompatíveis com o grau de modernização da economia.
Como é que começava mesmo o programa do então candidato presidencial Fernando Henrique, em 1994? “O Brasil não é um país sub-desenvolvido. É um país injusto.”
Em matéria de iniquidade social a distância entre a Terra e Marte é menor do que entre o Brasil e a Alemanha.
O efeito do programa de governo da direitista Angela Merkel, se ela desempregar o primeiro-ministro de centro-esquerda Gerhard Schröder – e tiver maioria para fazer o que promete – será encurtar um tantinho essa distância sideral.
Se é possível falar em capitalismo com face humana, nenhum país do porte da Alemanha, a terceira economia do planeta, conseguiu chegar perto disso. Em tempo algum.
A Alemanha é inacreditável. Para repetir um lugar-comum, deu ao mundo Kant, Goethe, Beethoven e muitíssimo mais. Depois deu Auschwitz. E depois de Auschwitz deu uma sociedade progressista como pouquíssimas.
Quando Lula falava em câmaras setoriais para acertar os interesses do capital e do trabalho, sob a mediação do Estado, a sua referência era a concertação, ou co-determinação – o formidável pacto econômico e social entre os sindicatos (de patrões e empregados) e o poder público que fez da Alemanha um dos lugares mais decentes para se viver.
Esse Éden, com a maior e mais segura rede de proteção social que já se viu, começou a fazer água depois da queda do Muro, quando a banda germânica ocidental incorporou a oriental, a um custo astronômico para o Estado.
Reformas “orientadas para o mercado”
Isso tudo mundo sabe. Mas o que poucos lembram é que esse mesmo Estado começou a acumular déficits colossais também porque financiou o Kapital do Oeste para se apropriar do patrimônio econômico do Leste, a preços de fim de feira. Como será que se diz lambança em alemão?
O fim do socialismo na outra margem do Elba fez o resto. Empresas e mais empresas alemãs mudaram as suas fábricas para a Polônia, do lado de lá do rio, ou para a República Checa, a fim de pagar impostos menos “escandinavos”.
Resultado: mais desempregados para o Estado do Bem-Estar Social sustentar, e menos empregados para ajudar a sustentar com os seus impostos essa maravilha.
Desde então, funcionando cada vez com mais intensidade, o aparato de produção ideológica do neoliberalismo, em coro com os interesses da finança globalizada – que abomina o gasto público com benefícios sociais e a regulamentação das relações de trabalho – encheu a cabeça da alemãozada com o refrão “reformas, reformas, reformas”.
Naturalmente, reformas “orientadas para o mercado”, como dizem os economistas. Não é à toa que Frau Merkel, a reformista da direita, é chamada a “Thatcher alemã”.
Isso não quer dizer que a Alemanha não viva dias difíceis. O país cresceu nos últimos 12 meses 0,6%, uma quirera perto dos tempos do Wunderwirtschaft, o milagre econômico do pós-guerra que parecia não acabar nunca. E o desemprego já passa de 11%, o segundo mais alto do Primeiro Mundo, depois da pequena Bélgica.
Ainda assim, o pessoal à esquerda do centrista e reformador moderado Schröder acusa a direita de superestimar a crise e distorcer as suas causas.
Um dirigente do SPD (o partido social-democrata alemão) lembrou dias atrás a um repórter do Financial Times de Londres que o maior exportador do mundo não é a China: continua sendo a Alemanha, que vende algo como US$ 900 bilhões por ano – e ostenta um saldo comercial da ordem de US$ 200 bi, também o maior do mundo.
Pode ser coincidência, pode não ser: mas na semana que passou esse dado mal apareceu na catarata de matérias da grande imprensa estrangeira sobre as mazelas da economia alemã.
A moral da história, vista daqui, é a seguinte: à parte qualquer outro fator, nestes tempos devastadores do chamado turbocapitalismo e da chamada globalização assimétrica – eufemismos para enriquecimento dos ricos e empobrecimento dos pobres – quanto mais golpes sofrer o Estado do Bem-Estar Social, maiores serão as chances de se perpetuar o Estado do Mal-Estar Social em países como o Brasil.
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