Como era previsto, Hamid Karzai, até seis anos atrás um ilustre desconhecido, foi eleito presidente do Afeganistão [ver abaixo remissão para o artigo ‘Eleições no Afeganistão – Desinformação na mídia italiana‘].
Desde a queda do regime talibã, muita coisa mudou no país – como pode ser observado nas 544 páginas do Essential Field Guide to Afghanistan (de Edward Girardet e Jonathan Walter, Crosslines Publications, 2ª edição, Genebra, 2004). Não se trata de um guia turístico, mas de um manual de como conhecer esse misterioso país, que há anos tenta sair das areias movediças do fundamentalismo.
Atualmente, as raízes dos problemas são a insegurança, os ataques armados e o terrorismo. Militantes neotalibãs incentivam agressões a quem dê apoio a Karzai, ‘patrocinado’ pelos Estados Unidos. Entre os alvos incluem-se os que prestam ajuda humanitária, homens de negócios, policiais e soldados. Por outro lado, a luta pelos direitos humanos, especialmente das mulheres, encontra dificuldades. Proporcionar-lhes cursos de formação é complicado, já que durante anos as mulheres ficaram proibidas de exercer atividades comerciais, culturais e continuam, em boa parte, esmagadas pelas pressões fundamentalistas.
O país, por enquanto sem capacidade para desenvolver instituições como exército ou polícia multiétnica, continuará a sofrer interferência aberta dos Estados vizinhos (Uzbequistão, Irã e Paquistão), mas já dá algum sinal de que pode começar a caminhar com suas pernas.
Cana dura
Por muitos anos existiu no país uma única rádio – a Sharia, controlada pelo mulá Omar, na qual era proibida a música e a voz feminina. A emissora transmitia somente orações, discursos e notícias oficiais.
Não era permitido cantar nem nas ruas. Com a queda do regime talibã, o povo voltou a cantar. Aproveitando-se desse fato, Saad Mosheni, comerciante afegão criado na Austrália – onde seu pai, diplomata, refugiara-se 20 anos antes –, resolveu voltar a seu país e investir na mídia radiofônica.
Ajudado pelos irmãos, empregou US$ 300 mil e ainda obteve outros US$ 200 mil da Usaid (United States Agency of International Developement), e assim criou a Rádio Arman – que quer dizer ‘esperança’ em afegão. Contratou 25 funcionários (8 mulheres), apenas um deles com experiência em rádio – Masood Ghyoor, que havia sido locutor oficial dos talibãs e foi o primeiro a noticiar a destruição dos Budas de Bamyan.
Ghyoor agora está encantado com a liberdade da palavra e lembra que, sob os talibãs, um erro de pronúncia significava alguns dias de cadeia.
Música no ar
Às quartas-feiras, Humayoon Daneshayer, ex-escultor de 40 anos, conduz o programa Os jovens e seus problemas na Rádio Arman. Em três horas de programa, escolhe para ler 25 cartas das centenas que recebe, nas quais os ouvintes pedem conselhos. São pessoas pressionadas pelas convenções sociais, jovens desocupados que vivem o pesadelo da violência, e em especial gente com o coração partido pelos casamentos combinados, pela bigamia, por paixões escandalosas, pela tradição que obriga o noivo a pagar dote de US$ 6 mil ao pai da noiva (num país onde a renda média anual é de US$ 600). O sucesso de Daneshayer está na forma simples e objetiva com que responde às cartas, em linguagem franca e aberta – o que para o Afeganistão é uma grande novidade.
Quando começou a transmitir, a Arman provocou um choque nos ouvintes: apresentava um homem e uma mulher juntos ao microfone, e tocava músicas de todos os tipos. Às sextas-feiras, dia destinado às orações e às execuções publicas, a emissora leva ao ar um hit parade com as 40 músicas mais solicitadas durante a semana. As mais pedidas são as canções de compositores e cantores locais, o que não impede que apareçam também artistas estrangeiros.
Se as mudanças que farão a Afeganistão andar com seus próprios pés começarem pela música, tudo poderá estar num bom caminho. Vale o que Miguel de Cervantes fez Sancho Pança dizer a Quixote: ‘Donde hay musica no puede haber cosa mala’.