A atividade de observação da imprensa, com disposição para manter o olhar atento e ativo o senso crítico, implica em razoável risco de mal-entendidos, como se verifica constantemente em manifestações de freqüentadores deste endereço. À parte a natural diversidade de interpretações, riqueza intrínseca da palavra publicada, alguns comentadores se esquecem de que não tratamos aqui dos fatos, propriamente, mas da maneira como eles são apresentados ao julgamento público pela mídia.
Assim, ao enveredar por caminhos que destoam da tendência avassaladora da mídia e ao alertar para evidências de vieses que comprometem a qualidade do jornalismo, o observador precisa escolher as palavras cuidadosamente, para evitar que seus interlocutores confundam o resultado da observação com a mera manifestação do desejo de crítica. Assim, estabeleçamos de princípio que só se dispõe a gastar seu tempo com a observação da imprensa quem a respeita e a considera uma instituição relevante para o bom desenvolvimento da nossa jovem democracia.
Esse o cenário que deve ser percebido por trás da insistência deste observador em afirmar que, no presente caso do escândalo que ameaça reduzir a mera curiosidade histórica nossa mais interessante experiência político-partidária, manifesta-se na mídia brasileira mais claramente uma triunfal confirmação de antigos preconceitos do que a busca da verdade sobre os fatos que se desenrolam, a cada dia, diante da sociedade estupefata.
Defesas frágeis
Os fatos são os fatos, sobejamente exibidos pela televisão, relatados ao vivo pelas emissoras de rádio e repetidos por todos os meios até a exaustão. Eles dão conta de que o partido fundado pelo presidente da República, que durante sua construção abrigou as melhores expectativas de milhões de brasileiros, revela-se capaz de reproduzir em um grau inimaginável de ousadia e incompetência algumas das práticas viciadas e criminosas da política de oligarquias que se propunha combater.
Entre o fato e a opinião pública, porém, está o objeto da nossa observação. Esse objeto, a imprensa, não se revela à altura do momento que a História nos apresenta. Dá-nos volume e ruído, em vez do conhecimento de que a sociedade necessita para formar sua opinião. Editorializa o noticiário e se vale de um jogral de articulistas de uma nota só, para dar verossimilhança a interpretações e julgamentos feitos a priori.
Recentemente, um articulista do jornal O Estado de S.Paulo, referindo-se aos eleitores que conduziram o ex-sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República, qualificou-os como ‘multidões de alegres palermas’. Foi efusivamente cumprimentado por correligionários e companheiros de página nos dias seguintes, sem que alguém o advertisse de que, desde antes da República, o mais tradicional diário do país costumava respeitar um código não escrito no qual se defende a elegância no texto e o respeito à diversidade de interpretações do todo social.
Ao explicitar por escrito o achincalhe que rola entre seus pares, contra toda manifestação de pensamento dissidente, provavelmente animado com a possibilidade de demonstrar ao dono do jornal sua ilimitada fidelidade, o articulista prestou aos observadores o favor de escancarar as premissas – não os valores que construíram a reputação do diário – com que se direcionam as opiniões a partir da mídia. Ajuda-nos a consolidar a percepção de que há um propósito na edição dos fatos e na seleção dos artigos sobre o escândalo político – o propósito de, independentemente do que for comprovado ao fim das investigações, fundamentar na consciência pública a impropriedade de levar ao poder alguém que não se encaixe no modelo de político bem aceito pelas cabeças coroadas da imprensa.
Há muitas complexidades a se considerar quando se trata de analisar as escolhas de edição. No presente caso, conspira contra os observadores a dificuldade de identificar as sutilezas do noticiário em meio à grosseria dos fatos. A fragilidade gritante das defesas apresentadas pelos acusados, as confissões que revelam o descontrole nas contas de campanha do partido governista e seus aliados, as evidências da prática de crimes, formam uma barreira quase intransponível de ruído a nos distanciar do que é nosso mister neste Observatório.
Mistura perversa
Contribui para essa dificuldade o despreparo do protagonista principal, o presidente da República, para lidar com a imprensa. Agrava-a uma estratégia de comunicação equivocada adotada pelo atual governo, desde a posse, e comentada por este observador em muitas ocasiões. Finalmente, torna-se tarefa delicada fotografar a dinâmica do noticiário e suas repercussões, dada a enxurrada de informações despejadas continuamente sobre o público, sem uma ponderação de valor relativo entre elas – cuidado que nos ajudaria a estabelecer os paradigmas necessários à formulação de opiniões bem fundamentadas.
Porém, essencialmente, o que falta à imprensa neste episódio vergonhoso para a consciência nacional é ambição intelectual. Arrasta-se o noticiário pelo varejo, quando poderíamos aproveitar o momento de ruptura e estupefação para rever o contrato social sobre o qual supostamente se constitui nossa nacionalidade.
Teríamos, desse ponto, uma oportunidade para pousar nossa atenção em relações econômicas e modos de regulação sob as quais florescem as causas da mais vergonhosa exclusão social e se multiplicam fortunas de origem não declarável. Talvez encontrássemos ligações entre o dinheiro sujo de campanhas eleitorais e alguns empreendimentos que foram saudados pela imprensa como exemplos de inovação e modernidade. Mais especificamente, empreendimentos digitais feitos com capital virtual.
Desse círculo mais abrangente poderíamos, ainda, conduzir nossas reflexões para a criação de instrumentos mais favoráveis ao desenvolvimento de nossa democracia. Não apenas em relação às regras eleitorais, à questão da proporcionalidade das bancadas no Congresso, às imunidades parlamentares, à representatividade distrital, à fragilidade dos sistemas de controle de gastos públicos, à farra das nomeações para cargos no aparelho do Estado e, finalmente mas não menos importante, à propriedade dos meios de comunicação, que, como se apresenta, pereniza a perversa mistura de interesses políticos e econômicos. Já para isso não bastaria, porém, ambição intelectual. Seria necessária uma dose razoável de espírito público.
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Jornalista