A pesquisadora Marcela Vecchione, do Observatório Político Sul-Americano, vinculado ao Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro) considera ruim, de modo geral, a cobertura do primeiro turno das eleições presidenciais peruanas, realizadas em 9 de abril. Ela questiona o que chama de preconceito contra o candidato Ollanta Humala.
Ela diz que o noticiário da mídia sobre processos políticos e sociais em países vizinhos do Brasil poderia melhorar se se tomassem providências simples como estudar melhor a história do país e o histórico dos candidatos e de seus partidos, e ler os programas partidários.
Eis a entrevista de Marcela Vecchione ao Observatório da Imprensa.
Qual é sua opinião sobre a cobertura do primeiro turno das eleições no Peru, realizado em 9 de abril?
Marcela Vecchione – A cobertura no Brasil sobre as eleições peruanas foi ruim, em termos gerais. Só foi mostrado um lado da moeda, o das acusações diretas ao Ollanta Humala – de que era uma figura que poderia desestabilizar a democracia no Peru. Mostraram até que ele poderia ser ligado ao que ocorreu na época do Fujimori, repressão, inclusive por ter sido comandante de uma base militar naquela época. Houve um certo exagero em cima dessa questão e não se procurou ouvir o outro lado, à exceção do que a Janaína Figueiredo fez no jornal O Globo, numa edição um pouco antes das eleições, em que ela apresentou uma cobertura muito boa sobre os candidatos, o processo eleitoral. E fez uma entrevista com a esposa do Ollanta Humala, a Nadine Heredia, que é uma socióloga, e aí foi dada uma outra visão sobre quem poderia ser o candidato mais votado, inclusive tentando desvinculá-lo da imagem da família dele. Uma imagem de repressão, de intolerância, muito pouco democrática, até. Ela fez também uma entrevista com Humala onde ele pôde explicar os pontos do programa de governo dele, o que significaria, para ele, a nacionalização de setores estratégicos, como ele se comportaria frente à questão dos direitos humanos, item que foi o mais questionado pela mídia, em geral: que o candidato preferido no Peru era o candidato antidemocrático. A cobertura da imprensa não informou de maneira ampla, ao público brasileiro, o que seria esse processo eleitoral, o que significaria até mesmo dentro do contexto da América do Sul. Achei pobre, mesmo.
Se a senhora tivesse a possibilidade de sugerir rumos para melhorar a cobertura do segundo turno no Peru pela mídia brasileira, ou para melhorar a compreensão que o público brasileiro tem da realidade brasileira, das dificuldades que a população enfrenta no Peru, o que diria? De que mais sente falta?
M.V. – Um passo para a mídia fazer uma cobertura de maior qualidade seria se inteirar melhor da história política do país. Por exemplo: um dos candidatos no segundo turno é Alan García, ex-presidente peruano. Um passo seria pesquisar o governo dele. Qual foram as medidas, o que aconteceu em termos de aprovação ou desaprovação popular, qual é a natureza do partido de que Alan García faz parte, o Partido Aprista, um dos mais tradicionais do país. Entrar na página do partido, olhar o programa de governo, o que nem dá tanto trabalho assim. Ver também a página da Aliança União pelo Peru, pela qual Humala se candidata. Isso possibilitaria fazer análises mais concretas, menos amadoras e, principalmente, menos preconceituosas.
A senhora tem acesso a noticiário de veículos da América do Sul e de outros países. O que existe de melhor, na sua opinião?
M.V. – Eu pesquiso diretamente nos principais jornais peruanos, na internet. De fora do continente, um veículo interessante para as matérias de América do Sul e América Latina é a BBC online. A informação existe na BBC. Ela não é tão destrinchada, mas eles procuram fazer uma cobertura medianamente ampla, buscando explicar historicamente o contexto político do país. Na própria reportagem há recursos para se entender melhor o contexto político, porque estão acontecendo certas coisas naquele processo eleitoral, qual é o background de determinado candidato. O público, nesse sentido, se situa melhor, até mesmo para ter uma visão crítica daquilo que está sendo escrito. Não absorver de maneira impassível, sem crítica, sem saber se é mesmo verdade, se estão dando todos os lados da história. Mostrando direito o que ocorre. É interessante para as pessoas formarem sua própria opinião. O serviço existe em português.
Em trabalho recentemente publicado (“Eleições e violência política no Peru”), a senhora usa o termo microeconomia ao falar das vicissitudes do Peru. Um retrato mais vívido disso não seria útil para os brasileiros? Nós aqui temos alguns problemas que não são muito diferentes. Eles se manifestam de outra forma, não há questões étnicas da maneira como se manifestam lá. Ouve-se nos últimos tempos de empresários que o presidente Alejandro Toledo conseguiu melhorar a economia do Peru, mas ele termina o governo de maneira quase catastrófica.
M.V. – Os empresários elogiam a saúde econômica peruana. Toledo realmente trouxe grande melhora para o país em termos macroeconômicos. É como se estivéssemos com uma grande angular por cima do país e observássemos indicadores como produto interno bruto, nível de exportação e importação, balança comercial, reservas. Ele fez o país crescer em termos macro. Média de 6% ao ano. Foi um salto em relação ao que se teve no segundo governo Fujimori. Só que esses ganhos macroeconômicos não foram repassados para o micro: diminuição da pobreza, da desigualdade. O Peru é um dos países mais pobres do continente, um dos piores em desigualdade. Esses problemas, no longo prazo, podem causar violência política, porque essa população, além de não ser incluída na melhora econômica, não é incluída politicamente, em termos de participação.
Economistas que acreditam nas virtudes do crescimento econômico costumam dizer que, quando a maré sobe, eleva todos os barcos, pequenos ou grandes. Mas recentemente o Banco Mundial reviu essa percepção e afirmou que não basta o crescimento. No Brasil às vezes existe a ilusão de que o crescimento, por si só, reduz a desigualdade. Se não bastassem as décadas em que o Brasil cresceu espetacularmente e a desigualdade não se reduziu, o Peru poderia ilustrar a necessidade de rever o conceito.
M.V. – Há esse senso comum em toda a América Latina. Só de um ano para á os organismos internacionais estão começando a perceber que a democracia entra numa fase de complicação muito séria quando não há diminuição dos índices de pobreza. É algo de que os acadêmicos já vêm falando há muito tempo.
Até onde a senhora conhece a realidade peruana, nos últimos 15,10 anos, ou durante o mandato de Toledo, se fez alguma coisa séria no capítulo da educação?
M.V. – Até onde eu sei houve uma melhora muito tímida. Porque a questão da educação acaba se inserindo nessas reformas micro. Não houve mesmo atenção mesmo para saúde, educação, essas coisas básicas no tratamento com a população. E ainda continua muito elitizada a educação superior, ou mesmo a secundária, principalmente nas áreas mais afastadas de Lima. O Peru não é uma federação e toda a política, toda a economia estão concentradas na capital. regiões mais afastadas ficam mesmo esquecidas.
No seu trabalho há numa nota de pé de página uma referência que seria um pouco chocante no Brasil, em relação à situação dos mestiços, diferente também do que existe na Bolívia (“No Peru, a maioria dos indígenas está hoje representada pelos mestiços, que trazem em si o estigma que advém do adultério”, citação de um trabalho de Gonzalo Mulanovich) .
M.V. – A separação racial é sempre complicada. Há aspectos muito mais relevantes do que a raça. É um conceito ultrapassado para se fazer qualquer tipo de análise. O que ocorre é um problema social muito sério. O que eu digo no artigo é que o preconceito vem de dentro, dos próprios indígenas. O fato de eles serem indígenas é considerado por eles próprios uma condição dessa pobreza, dessa exclusão, de desigualdade. Uma das explicações para a decepção com Toledo é que quando ele foi eleito, em 2002, não só sido depois de um período super-complicado, o de Fujimori, é que houve também uma identificação dos indígenas com ele. Toledo era o indígena que eles sempre quiseram ser, que estudou – a maior parte do tempo fora do país, nos Estados Unidos –, é casado com uma branca, tem um certo status social. Tem-se um certo ciclo vicioso. Eles têm esse preconceito – de que ser indígena é a condição determinante de sua pobreza e, ao mesmo tempo, o fato de que não têm uma identidade, faz com que fique mais difícil ter o movimento entre os indígenas como na Bolívia, e que se reivindique maior participação política. Os mestiços estão dentro disso. Embora se sintam mais afastados, por estarem mais próximos dos brancos, também há esse preconceito de dentro. Os mestiços são mais numerosos do que os indígenas, mas estão dentro da base de representação indígena. A própria história e a literatura do Peru no século XIX mostram que existe essa aspiração, porque representaria uma melhora, em termos de fenótipo, mas também uma melhora social. Esses mestiços têm dificuldade de reconhecer sua identidade como cholos, como se fala no Peru, porque a maioria deles, se se toma a linha da ancestralidade, tem nascimento advindo de adultério entre os colonizadores e as indígenas da região. O preconceito é mais forte porque o Peru é um país muito conservador, muito católico. Esse tipo de coisa importa muito para a identidade do peruano, e também para sua identidade política.