Por muitos motivos, sou daqueles que preferem queimar uma nota de dez reais a gastá-la comprando uma Veja, a revista que quer que você não veja. O motivo maior, ao lado do fato de ser um panfleto político-econômico da direita conservadora e ultracapitalista, é o seu famoso ‘jornalismo’ manipulador vinculado a interesses político-econômicos privados, cujo modus operandi de indução dos leitores acríticos a opiniões conservadoras ou reacionárias é facilmente percebido em reportagens que falam de temas como governo petista, países opositores dos interesses dos EUA, movimentos sociais e, como falo aqui, pecuária, vegetarianismo e direitos animais.
Em quatro grandes momentos recentes pude reiterar minhas certezas sobre o grande ‘serviço’ que a Veja faz aos animais não humanos e ao meio ambiente, pelo esforço de desacreditar o vegetarianismo como dieta saudável e salvar o negócio dos seus compadres pecuaristas e forrageiros latifundiários.
Primeiro, em junho de 2009, uma defesa opinativa, disfarçada de reportagem, da pecuária bovina contra as alegações da exploração animal e da periculosidade ambiental da bovinocultura, com destaque à expressão ‘Pura conversa para boi dormir’ e às frases ‘Comer um bom bife é uma aspiração natural e cultural. Ou seja, nem que a vaca tussa a humanidade deixará de ser onívora’. Investiu-se na defesa apaixonada da ‘importância’ da escravidão de bovinos, como se o ser humano fosse vitalmente dependente disso e existisse uma relação ecológica de mútua dependência entre o gado e os humanos – o que é mentira, já que escravidão e exploração não são algo concernente à Ecologia ou a qualquer relação biológica.
Defendendo a tortura em laboratório
No primeiro quadro de apoio ao artigo pró-pecuarista travestido de matéria, uma ‘acusação’ mal escrita que junta, sem coesão, a flatulência do boi como única contribuição bovinocultora às mudanças climáticas e a defesa da substituição da pecuária pela agricultura de alimentação humana. Isso ladeado por uma resposta que já não tem a ver com esses assuntos, mas sim com ocupação de solo – resposta que, aliás, não veio acompanhada de prova ou embasamento técnico, escorando-se na credibilidade magister dixit da revista.
Na página 92, uma lista enorme de produtos nos quais os restos corporais do ser bovino seriam essenciais. Uma tentativa perfeita de manter os leitores aprisionados na caverna de Platão, se os veganos não já estivessem conscientes de que há substitutos vegetais, minerais ou sintéticos para compor todos os itens listados.
No segundo quadro, ligado ao consumo de água, mais incoerência. Tenta-se justificar o alto consumo de água pela pecuária bovinocultora com um reducionismo que ‘esquece’ que a maior parte do gasto d’água sob responsabilidade da criação de gado é por causa da agricultura de forragem e do processamento frigorífico dos corpos dos animais, não porque bois bebem muito. Enfim, em ambas as caixas de texto, muita enrolação, poucas coerência e coesão.
Mais de um ano depois, me deparei com a falsa preocupação com as violências cometidas contra bichos, numa reportagem de setembro de 2010 que foi objeto de um outro artigo meu. Numa reportagem tipicamente bem-estarista, abordando apenas problemas que se pode ‘resolver’ sem mexer com os interesses econômicos de quem ganha dinheiro com escravidão e morte, tenta-se ‘conscientizar’ o leitor à ‘compaixão’ para com os animais não humanos – uma ‘compaixão’ que autoriza a pessoa a continuar indo a rodeios e vaquejadas (omitidos na matéria), consumindo sem culpa alimentos de origem animal e defendendo a tortura de roedores em laboratório.
Impacto do vegetarianismo é julgado ‘baixo’
Em seguida, uma verdadeira ‘trollagem’ contra o vegetarianismo, ao afirmar, com dados questionáveis, que crianças não poderiam aderir a uma alimentação sem derivados de animais, o que foi competentemente refutado pela culinarista Renata Octaviani. Convido as pessoas a lerem o artigo dela para conhecerem os detalhes e o outro lado de mais uma manipulação da revista.
O mais recente foi o que me inspirou a fazer este texto: a edição especial com o tema ‘sustentabilidade’, de dezembro passado. A parte que fala do impacto ambiental positivo de certas medidas habituais pró-sustentáveis afirma sem pudor nem qualidade quando a atitude é abandonar o consumo de carne:
A rigor, não há motivo para colocar no mesmo prato a abstenção do consumo de carne (que é uma postura filosófica) e a adoção de hábitos sustentáveis – mas existe certa confusão popular entre as duas. É verdade que a pecuária responde por 17% [sic] das emissões de gases do efeito estufa e ocupam terras que teoricamente [sic] poderiam [sic] ser florestas – mas o mesmo se poderia dizer da agricultura. Ambos, a carne e os vegetais, são recursos renováveis domesticados pelo homem [sic] e fazem bem à saúde. ‘Alimentar-se só de vegetais pode causar doenças, como a anemia’ [sic], diz Solange Saavedra, do Conselho Regional de Nutricionistas de São Paulo.
Se considerar que outras providências que envolvem muito menos guinada de crenças e hábitos e mais simplicidade de atitude são descritas com boa qualidade e relativa riqueza de números e consequências (confira o scaneado aqui), a tentativa de defender o consumo de carne foi um buraco factual e qualitativo e um poço de enrolação. E ainda julga o impacto do vegetarianismo como ‘baixo’, menor que o de urinar apenas no banho, por essa ‘justificativa’ precariamente escrita.
Milhões de hectares roubados de ecossistemas brasileiros
Como não há outro artigo empenhado nessa tarefa, comento aqui cada parte da passagem:
‘A rigor, não há motivo para colocar no mesmo prato a abstenção do consumo de carne (que é uma postura filosófica) e a adoção de hábitos sustentáveis – mas existe certa confusão popular entre as duas.’
De primeira, a Veja demonstra ignorância ao pensar que existe uma ‘confusão’ segundo a qual o respeito aos animais estaria sendo confundido com a preocupação ambiental. Embora sejam motivos diferentes, não formam nenhuma confusão, porque se somam. A maioria dos vegetarianos que não o são só por saúde abandonou o consumo de carne pelos dois motivos, ainda que o ambientalismo seja muitas vezes um fundamento secundário e a ética animal, o principal. Uma causa não exclui a outra – pelo contrário, mesclam-se numa só consciência globalista e não antropocêntrica, de respeito à totalidade da natureza, que inclui seres humanos, animais domesticados e a parte silvestre do meio ambiente.
É verdade que a pecuária responde por 17% [sic] das emissões de gases do efeito estufa e ocupam terras que teoricamente [sic] poderiam [sic] ser florestas – mas o mesmo se poderia dizer da agricultura.
A revista diminui o fato de que a existência da pecuária implica pelo menos 18% (não 17%) da emissão de gases-estufa, evitando entrar em quaisquer detalhes, e tenta defendê-la dizendo que ‘o mesmo se poderia dizer da agricultura’, mas não mostra quantos porcento são emitidos pelas plantações destinadas diretamente à alimentação humana.
Sem falar que ignora que parte considerável da produção mundial de soja e milho, o que inclui milhões de hectares roubados de ecossistemas brasileiros, é dedicada a alimentar animais ‘de corte’, desde bovinos até frangos.
‘Alimentar-se só de vegetais pode causar anemia’
Quando consideramos que a pecuária consome grande parte dos frutos da agricultura de alimentação, tomando para si a responsabilidade por uma considerável parcela dos impactos ambientais desta; que a atividade agrícola ainda tem que dedicar boa parte de sua área, separando-a da produção alimentícia, a objetivos não alimentares – biocombustíveis, fibras têxteis etc. – e que os impactos da pecuária somam os efeitos direitos da criação de animais e os indiretos advindos da cultura de forragem, torna-se absurdo equiparar o peso ambiental da agricultura de consumo alimentar humano ao da pecuária.
E ainda insinua que quase um milhão de quilômetros quadrados que eram parte da Floresta Amazônica, enorme porção do Cerrado e uma grande parcela da Mata Atlântica original, destruídos para pastagens, ‘teoricamente (sic) poderiam (sic) ser florestas’, ou seja, não eram vegetação, mas ‘teoricamente poderiam ser’. Não estaria comprovado que houve (e há) desmatamento para a expansão de pastos. A lógica da Veja é: essas áreas poderiam ter sido florestais sim, mas por que não poderiam, ao invés, ter sido antigas áreas de deserto ou campos gramíneos naturais prontos para receber milhões de animais de rebanho?
Ambos, a carne e os vegetais, são recursos renováveis domesticados pelo homem [sic] e fazem bem à saúde.
No âmbito ambiental, não importa se a carne, vermelha ou branca, faz bem à saúde ou não, mas sim que esse ‘bem’ custa muito caro ao meio ambiente, podendo uma refeição sem carne prover os mesmos benefícios – e muito menos malefícios, conforme a revista odiaria admitir – com impacto muito menor. E, pergunto, onde algo ser um ‘recurso renovável domesticado’ entra na história das discussões sobre sustentabilidade, o que tem a ver uma coisa com a outra. Porque a Veja não explicou essa suposta relação.
‘Alimentar-se só de vegetais pode causar doenças, como a anemia’ [sic], diz Solange Saavedra, do Conselho Regional de Nutricionistas de São Paulo.
Uma outra realidade possível
A Veja se põe como um obstáculo, ainda que usando argumentos mal fundamentados, à difusão do vegetarianismo na população, por assustar as pessoas menos informadas propagando velhos e surrados mitos, aquelas antigas falsas ameaças relacionadas a anemia, carência de proteínas, falta de cálcio etc. E a forma como expõe tais mentiras é precária e falaciosa, se baseando em apelos à autoridade. Tudo o que sustenta a ‘veracidade’ do mito da anemia vegetariana é a posição de autoridade da citada, nenhum dado estatístico ou estudo científico. Uma abordagem infantil, alienante e até mal intencionada de um assunto sério que ainda causa receio e preocupação em vegetarianos iniciantes e pais de vegetarianos menores de idade.
Com essas quatro amostras, percebemos que o ‘jornalismo’ de opiniões travestidas de reportagens da Veja é não só interesseiro como também mal-intencionado, por se esforçar em manter o prestígio e a demanda consumidora de um sistema – e seus barões – que vive e lucra por explorar e assassinar anualmente bilhões de animais, através da militância panfletária a favor do consumo a olhos vendados. Em outras palavras, ostenta a má intenção de favorecer aliados econômicos em detrimento da vida, da liberdade e da integridade física de seres que, mesmo dotados de senciência e interessados em viver em liberdade e continuar vivos, são tratados como coisas sob propriedade de alguém.
A revista esbanja má fé ao tentar obrigar as pessoas a comer carne e comprar produtos de origem animal, exaltando a pecuária como uma divindade que mantivesse a humanidade viva, erguendo muros para impedir que os leitores fujam para o veganismo e proferindo ameaças mentirosas de adoecimento a quem discorda do seu ditame onivorista. Sua manipulação busca manter o leitor acrítico preso na caverna platônica do consumo aético e sem consciência, submisso aos Grandes Irmãos pecuaristas, aquietado e controlado pelo medo da ‘subnutrição vegetariana’ e acorrentado pela crença na inexistência de produtos veganos.
É desonesta ao, com esse fim, utilizar argumentos falaciosos, mentiras e mitos cujas refutações são ignoradas e omitidas em seus artigos-matéria e ocultar o outro lado – nutricionistas especialistas em vegetarianismo, artigos científicos que argumentam em favor da saúde vegetariana, ativistas veganos etc. E é qualitativamente ruim ao incidir em falhas primárias de coesão que mesmo um adolescente do final do ensino fundamental saberia evitar.
Junto à Globo, é um dos mais importantes opositores do veganismo e do reconhecimento dos Direitos Animais no Brasil e os maiores exaltadores a nível nacional das atividades econômicas e/ou culturais que implicam escravidão, violência, sofrimento e morte contra bichos. Criticar a Veja é como chamar o diabo de mau ou dizer que a Lua é redonda, mas ainda hoje se faz muito necessário, para orientar os leitores de menos senso crítico que a revista que leem comete muitos erros e leviandades. Para lhes mostrar que existe um outro lado, uma outra realidade possível, que a revista e os latifundiários – incluindo pecuaristas e plantadores de grãos de alimentação animal – não querem que conheçam.
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Estudante, Recife, PE