A definição é simples: a mesma forma fônica ou gráfica cobre diferentes significações. Jacintho Lamas [funcionário do PL], um dos citados no megashow espetacular das CPIs, é mais do que um nome próprio, visto que faz circular sentidos risíveis para a seguinte possibilidade de leitura: ‘já sinto lamas’. Dita no contexto atual, a homonímia promove a emergência dos efeitos de sujeira, explícita no nome próprio e estandartizada no implícito que se pode ler a partir dele.
Lamas derivadas de acusações justapostas umas às outras, tendo depoimentos de personalidades com perfis e atividades tão diversas: uma cafetina brasiliense, que certamente conhece de perto suspiros exaustos de alguns envolvidos; o policial mineiro sacador de cifras alarmantes; um publicitário baiano, que bombasticamente interliga a rede de conexões internacionais dos caixas um e dois; diretores e empresários que alegam não saberem de nada a não ser do salário que lhes foi pago em retribuição a serviços prestados. E outros personagens ainda virão, todos tagarelando a dimensão da engenharia e logística antes de e para se manter no poder.
Além deles, a exibição das CPIs ao vivo e online, transmitidas no meio da programação de emissoras e portais, coloca em cena um outro personagem – a mídia – que, ao contrário dos anteriores, não tem rosto nem identidade aparente; não se pode reconhecê-lo pela careca lustrosa nem pela barba característica. É ela a promotora de um grande espetáculo em que se naturaliza o apego ao detalhe exótico e inusitado e em que se cria a fantasia de que é possível assistir a uma sessão de CPI como se fosse um programa de entretenimento e, no meio da transmissão, o espectador pudesse lançar, no céu do desespero da sua condição de torcedor (contra ou a favor), um grito de gol.
Fato e relato
Espetaculariza-se a realidade para que o consumo venha e, assim, a suposta adrenalina pura, de ter o mundo das informações na mão, faça o espectador crer que ele realmente é parte do processo, capaz de atuar na cena mais importante da política nacional, de preferência, esquecendo-se de que a hipnose processa o efeito colateral da amnésia.
Qual é a função do excesso de dados e informações veiculadas pela mídia? Em que medida essa abundância é sintoma da exposição de uma falta? Como ler tais indícios de fartura de relatos e imagens senão a partir da lente de um poder de fazer com que o espectador não lembre, se esqueça rapidamente do que consumiu e fique ávido para que a roda d’água midiática continue a girar? Tais questões remetem a discussão a um imaginário de poder, que não envolve apenas a esfera econômica e política, mas, sobretudo, afeta um modo de representar e medir a relação dos sujeitos com o mundo e a linguagem.
É da carpintaria imaginária da mídia trançar os fios do agora, de modo a parecer que eles não têm história nem condições sociais, deixando-os desamarrados para que o leitor os consuma como numa cadeia de fast food um sanduíche é mordido. Capas de revista, jornais diários e portais eletrônicos têm lançado capas de impacto (na capa de recente revista, o destaque é a foto de Valério com feições de um cadáver arroxeado), chamadas de última hora (‘o plantão do jornal informa’), reportagens exclusivas (diário da crise e os últimos 100 dias), infográficos pedagógicos (desenhos e frases curtas para que você saiba mais), entrevistas inéditas (Collor explica o que sentiu nos dias que antecederam o seu impedimento), entradas ao vivo (falamos agora do corredor do Senado) e closes do corpo dos envolvidos (três fotos mostram o frango do presidente em partida de futebol), ainda que o corpo esteja ausente e dele só se mostre a voz (durante toda a tarde, Roberto Jefferson cantou ópera em seu apartamento, ouça agora).
Especulações de jornalistas, edições de falas de autoridades e anônimos que viram, ouviram ou imaginaram algo são colhidas em salas, salões e corredores onde se aglomeram lentes e olhos, gravadores e bocas. Fato e relato se globalizam rapidamente com a velocidade da atualização dos portais e dos plantões, plantando dizeres, sujeitos e sentidos e marcando que a circulação de alguns sentidos (e não de outros), a escolha de alguns entrevistados (e não de outros), a exibição de alguns depoimentos (e não de outros), a seleção de algumas fotografias (e não de outras) toquem de perto e nas vísceras, uma forma eficaz de poder e controle sobre o imaginário social.
Lição bem-aprendida
Entram em curso as representações de político que estão autorizadas a circular, sustentadas por uma rede de interditos e pré-ditos, que o tempo todo reclamam e replicam a memória para significar. Só a título de exemplo, vale destacar a tentativa midiática de aproximar os presidentes Lula e Collor, os caras-pintadas e os novos caras-pintadas, de modo a trazer para a atualidade os fios intertextuais de uma outra cena já dita. Em geral, âncoras de diferentes emissoras mediam os mesmos fatos, repetem as mesmas imagens, reprisam as mesmas reportagens e instalam o mesmo rol das denúncias em cadeia, aplicando o mesmo nome ao momento atual: a pior crise política do governo Lula.
Em meio à tormenta, surgem figuras-pareceristas que, em nome da moralidade pública, fazem de conta esquecer a sua vida pregressa, fartando-se de uma honestidade que não lhes constitui e anunciando a idoneidade de seus partidos.
Últimas semanas, um assalto hollywoodiano à agência do Banco Central em Fortaleza encheu os olhos da mídia e, segundo os relatos dela mesma, assombrou o cidadão comum. Há roubos por túneis como este, cavados no chão, abertos com ferramentas de manuseio braçal em distância de até 80 metros, feitos por homens ansiosos por notas de dinheiro vivo, em papel. Há outros túneis, distantes do asfalto, que não são facilmente vasculhados nem se deixam fotografar… Por eles, circulam não homens rastejantes, mas engravatados que, das alturas, trançam redes de influência, jogos de interesse e acordos de gaveta. São túneis mais longos do que a medida de 80 metros…
Eles expõem a nu o tamanho e o peso dos anos que nos precederam; o modo de fazer política e lidar com o poder, recitado pelas classes dominantes; o desvalor da ética na gestão do bem público, tão bem incorporado até mesmo por líderes populares; a força e o poder dos grupos mantenedores das corporações midiáticas e, sobretudo, o silenciamento dos sem-parcela, a não ser como alvo de piedade, motivo de projetos filantrópicos ou populistas e massa votante a cada dois anos. É o peso histórico do ‘já sinto lamas’ e, ao que tudo indica, a lição foi bem-aprendida.
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Professora-doutora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo