Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A mídia e a expansão da fé

Não fosse o registro de Daniel Castro, colunista da Folha de S.Paulo (Folha Online 27/1/04 – 2h52), a relatar a ocorrência da qual trataremos adiante, o cidadão brasileiro estaria absolutamente divorciado de qualquer informação a respeito, o que aliás suponho ainda estar, levando em conta a continuada ausência do fato nos noticiários nos dias subseqüentes.

O jornalista divulgou a seguinte notícia da qual extraímos seu início:

‘Na semana em que foi demitido pelo presidente Lula, o ex-ministro das Comunicações, Miro Teixeira, deu em um único dia, 20 de janeiro, 56 canais de retransmissores à Fundação Nazaré, da Arquidiocese de Belém, onde tem uma geradora educativa’.

O desdobramento da matéria dá conta de que a rede abrange amplas áreas da região Norte. Os canais concedidos cobrem as cidades de Manaus, Cuiabá, Palmas, Macapá, Rio Branco e Porto Velho. Incluída também está São Luís, em razão dos cinco canais já existentes no Maranhão. Ao que parece, de acordo com a fonte, tudo transcorreu nos limites da lei. A questão, portanto, não envereda pelos possíveis e obscuros atalhos das negociatas. O problema passa a ser de outra natureza. É sabido que a TV Nazaré transmite programação católica, conforme destaca o jornalista citado.

Em outro segmento de notícias, porém com vinculação à mesma matéria, Daniel Castro informou a existência de uma relação conflituosa entre a Igreja Universal do Reino de Deus e a Direct TV, por esta haver, sem aviso prévio, retirado os canais evangélicos Rede Mulher e Rede Família, embora mantivesse no ar a Rede Vida, de orientação católica, o que, segundo o jornalista, motivou, na madrugada de sábado (25/1), indignado protesto por parte de um bispo da Universal, durante um dos programas religiosos exibidos pela TV Record.

Mídia, política e religião

Os fatos aqui rememorados, de início, sugerem um questionamento acerca do silêncio da mídia, considerando que o tema haverá de preocupar não só profissionais diretamente ligados às atividades de comunicação como também a qualquer cidadão, independentemente de seu estado de crença ou descrença – afinal, esses também existem e permanecem reconhecidos como integrantes da espécie humana.

Deseja-se de pronto acentuar o crescente movimento de disseminação da fé religiosa pelos meios de comunicação de massa, além das ostensivas participações de religiosos na vida política da nação. Trata-se de um sintoma grave. O temor não deriva do reconhecimento do quanto a religião se distancia da política. Ao contrário, por identificar que facilmente elas se podem aglutinar é que o temor adquire forma. Em diferentes épocas de uma mesma cultura ou em culturas diferentes, não faltam exemplos a respeito da drástica fusão entre ambas, quando pensamos que, para uni-las, estão sempre à mão o fanatismo, o messianismo e o dogmatismo.

A respeito do tema, é aconselhável lembrar as reflexões empreendidas, entre outros, por E. Cioran, principalmente nos ensaios ‘Genealogia do fanatismo’ e ‘Rostos da decadência’ que integram a edição brasileira de Breviário de decomposição (Rocco, 1989).

Normalmente, quando líderes políticos são pregadores religiosos, facilmente tendem a fazer da política mera extensão de suas crenças religiosas, o que acarreta o surgimento do terreno fértil para vingar o modelo antidemocrático, sob a inspiração da retórica totalitária e salvacionista com a qual se realimentam o fanatismo, o messianismo e o dogmatismo.

Se a mídia responsável, tão zelosa que é (e deve ser) da democracia, não assumir o papel que lhe cabe, ou seja, sinalizar para a população o risco dessa parceria – que, pelo visto, já se constitui em formação triádica, dado o aumento progressivo das instituições religiosas nos meios de comunicação e na indústria cultural –, haverá o perigo de a sociedade brasileira estar a caminho de tensões cujas conseqüências poderão ser nefastas para todos. Volto a insistir: exemplos pelo mundo afora não faltam.

A cena política nacional é cada vez mais habitada por políticos cuja retórica acentua o tom religioso. Sem alarmismo, quer-se pontuar que o perfil laico do Estado brasileiro tem perdido boa parcela de sua autonomia. Não sejamos ingênuos. Proliferam, no Congresso Nacional, bancadas (deputados e senadores) que se elegem com base em seus redutos de fiéis. Igual percepção se pode ter no tocante a cargos executivos, tanto em âmbito municipal, quanto nas esferas estadual e federal. Diferente não se dá na ampliação de publicações, de redes (rádio e TV), programas diários, inclusive com horários comprados em emissoras comerciais desvinculadas de instituições religiosas. Todos têm em comum a prática de ostensivas pregações.

A omissão diante desses passos sinuosos pode estar permitindo a instalação de um quadro societário no qual a intolerância, sempre cúmplice das convicções inabaláveis, venha a germinar tensões até então desconhecidas na vida brasileira. Quando a evangelização se torna o suporte para a ação política transformadora, o que se obtém é a política da evangelização, seguida do domínio sobre as vozes da diferença. Atingido esse estágio, passa a vigorar a lógica persecutória do fundamentalismo, perante o qual a democracia não é mais reconhecida como prática das relações societárias. Não custa recordar que, diferentemente do que possa pensar a maioria, ‘fundamentalismo’ é um conceito formulado primeiramente pela matriz cristã. Somente em tempos posteriores é que o termo foi deslocado para religiões orientais.

Perversa e sanguinária

Ciente da redundância, mas com o propósito de dar a devida ênfase ao problema, reafirme-se que a questão religiosa no Brasil atual não se esgota na ocupação que as instituições da fé promovem no circuito midiático e sim na montagem, passo a passo, de uma arquitetura política. A presença crescente na mídia apenas realimenta o caudal de seguidores; a presença na construção política define estratégias outras.

A preocupação esboçada em parágrafos anteriores leva em conta também a manifestação de políticos em cerimônias oficiais, ou seja, a mistura de papéis e funções tem sido a tônica de muitos pronunciamentos. Apenas para ilustração com fatos mais recentes, vale destacar que o discurso de despedida da evangélica e ex-ministra Benedita da Silva não escondia a pregação em favor de Jesus. Diferente não se portou Patrus Ananias, ministro entrante, que, no discurso de posse deu o troco em versão católica, com várias alusões a Deus, a ponto de inspirar o título da matéria publicada pela Folha de S. Paulo (‘Patrus assume e agradece a Deus pelo ministério’, 28/1/04).

Logicamente, o tom do artigo não se endereça contra nenhuma religião. O problema é saber se a religião é reconhecida como uma experiência vivencial legítima, ou se é transformada em instrumento de afirmação (sedução) política. Há, portanto, em torno desse tema um éthos que carece de maior definição, sob pena de, perdendo-se o momento certo para o ajuste, não mais se encontrarem mecanismos capazes de refrear o processo.

A defesa em favor da laicização do Estado brasileiro representa um compromisso com a preservação da democracia. Para tanto, a retórica de políticos e as concessões para emissoras de rádio e TV deveriam ser objeto de emergente reavaliação.

A título de simples lembrete, examinemos o seguinte aspecto, antes deixando claro ao leitor que nenhum vínculo tenho com o judaísmo, exceto amizades como as tenho com católicos, protestantes, islâmicos e budistas. Nunca foi segredo para ninguém que a família Bloch é de raiz judaica. Alguém, entretanto, terá na lembrança programas da extinta TV Manchete direcionados à difusão do judaísmo? Documentários ou reportagens a envolver o Holocausto, todas as emissoras sempre os exibiram ou produziram-nos. Por outro lado, na antiga Manchete, nenhum programa tematizava ou pregava a difusão de valores ou crenças do judaísmo.

A ilustração tem o intuito de deixar claro que os detentores de meios de comunicação ou de mandatos políticos devem usufruir da mais ampla liberdade religiosa (é um direito constitucional e democrático), na condição de cidadãos. Atrelar, porém, a imagem e a função públicas aos credos aos quais se subordinam significa traição ao próprio sentido profundo da religião – compreendida, repito, como experiência vivencial subjetiva.

Se o conhecimento da História ainda tem lugar, é bom recordar que nenhum Estado com direcionamento religioso, seja no Ocidente ou no Oriente, trouxe prosperidade à nação. E mais: em todos os casos nos quais a instituição religiosa assumiu (ou assume) a condução política, a conseqüência foi (e tem sido) desastrosa, catastrófica, perversa e sanguinária. É bom que a mídia – ainda independente – saiba colocar o tema na ordem do dia.

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(*) Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA)