Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Em busca do homem de verdade

Ler as edições de jornais e revistas nos últimos tempos, particularmente nas últimas semanas, e desde que a última e atual crise política foi deflagrada, é um ato repleto de desprazer.

Um certo sofrimento psíquico que sempre assaltou as redações, por muitas e diferentes razões, agora chega aos leitores sem nenhuma inibição. A realidade transformou-se num inferno de onde ninguém com alguma consciência pode escapar. Uma alegoria possível é que penetramos a zona proibida de um buraco negro e somos sugados pelo seu interior sem qualquer chance de fuga.

Se cultivássemos um pouco de filosofia certamente estaríamos de acordo que este é um tempo para releitura de Diógenes, o Cínico. Mas os governos militares retiraram a filosofia das escolas e em seu vácuo colocaram a sociologia, disciplina incapaz de estimular a imaginação e a criatividade por sua esterilidade de origem.

Diógenes, contemporâneo de Aristóteles, viveu no século 4 a.C. e ficou conhecido na posteridade por duas atitudes que já em sua época foram excêntricas. Costumava andar durante o dia com uma lamparina acesa e quando lhe perguntavam o significado daquela atitude aparentemente ilógica respondia que procurava um homem verdadeiro.

Diógenes também ousou desafiar Alexandre, o Grande, discípulo de Aristóteles, que o teria visitado em Corinto em 335 a.C. depois de ter tido sua confirmação como líder na Liga Helênica e consolidar sua campanha contra a Pérsia, o Irã atual.

Perturbado pela morte do melhor amigo, auxiliar direto e provavelmente seu amante, Hephaestion, Alexandre fazia incursões freqüentes no universo da loucura quando quis conhecer Diógenes, a quem Platão havia se referido como um ‘Sócrates enlouquecido’.

Alexandre e seu séqüito encontraram o filósofo nos subúrbios de Corinto, ao lado de um barril de argila que lhe servia de casa. Diógenes tomava sol nu, com apenas uma tira de tecido cobrindo o sexo.

Com a concentração perturbada pela chegada do grupo, o filósofo teria aberto os olhos e encarado fixamente Alexandre sem lhe dirigir uma única palavra. Alexandre, constrangido, cumprimentou Diógenes e, ao final de um momento de silêncio, perguntou se poderia fazer alguma coisa por ele. ‘Oh, sim’ teria concordado o filósofo para acrescentar: ‘Saia daí, você está bloqueando o Sol. Não me tires o que não podes dar-me’.

Segredos da sedução

As duas razões básicas para uma releitura de Diógenes neste momento estão relacionadas à possibilidade de se encontrar um homem de verdade, além da denúncia de pretensão pelo sistema de poder encarnado em Alexandre que metaforicamente nega o Sol, sinônimo de fonte de energia e vida, ao filósofo.

O homem de verdade a que se refere Diógenes era aquele que vivia em conformidade com a natureza e, neste sentido, de alguma maneira é precursor tanto do movimento romântico quanto do anarquismo. Mas a vida em conformidade com a natureza, muito além de uma semelhança com o que hoje chamaríamos de ecologismo, é, na verdade, uma questão de coerência entre o que se fala e o que se pratica – e aí está uma das lições de Diógenes.

Ao desdenhar Alexandre, o filósofo exibiu apenas uma das muitas vezes em que repeliu o poder, o que o tornou exótico mesmo aos olhos de seus contemporâneos. Mas Diógenes foi coerente com seu sistema de valores, possibilidade impraticável à maior parte dos críticos participantes da crise política atual, personagens com que os editores da imprensa torturam seus leitores.

Apenas duas referências para não nos alongarmos numa abordagem que seria exaustiva e também torturante a eventuais leitores deste escrito.

A Igreja Católica, através de seus príncipes, os bispos, tem feito uma série de condenações que vão da ética à falta de coerência do governo atual. Mas como pode a Igreja Católica atrever-se a essas abordagens quando ela própria varre para baixo do tapete a sujeita que não quer ver exibida em público?

Publicações denunciando esta impostura têm sido cada vez mais freqüentes e, apesar do esforço das autoridades eclesiásticas, aos poucos rompem o isolamento arbitrário e dissimulado. Uma dessas publicações é o livro Desvendando a Política do Silêncio, escrito a partir de pesquisas originalmente feitas para uma tese na PUC-SP pela pesquisadora e doutoranda Regina Soares Jurkewicz. Financiada pelo Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher, o trabalho analisa 21 casos de mulheres e 68 de crianças vítimas de abusos sexuais cometidos por padres no Brasil.

A pesquisadora denuncia que os bispos encobrem os casos de crimes sexuais e ainda se esforçam para calar as vítimas. Dos 21 casos envolvendo mulheres, 17 tratavam de vítimas menores de 16 anos, mas apenas cinco deram origem a processos criminais.

O livro desenha um perfil dos padres que cometem abusos sexuais: têm idades entre 40 e 50 anos e quase sempre são novatos na comunidade em que atuam. ‘Têm boa aparência e são sedutores’, escreve Regina Jurkewicz. Segundo a autora, o que mais a chocou foi o fato de que ‘os bispos tomam conhecimento desses crimes, mas apenas transferem o padre de paróquia, como solução para evitar escândalo’. Na nova comunidade, ‘o padre inicia seus trabalhos como se nada tivesse acontecido’.

Sistêmico e histórico

Qual a diferença entre os expedientes praticados pelo atual governo?

E se os abusos sexuais de religiosos no maior país católico do mundo não são exatamente uma novidade, a mesma coisa pode ser dita do sistema oligárquico que faz do Brasil a segunda nação com pior distribuição de renda em todo o mundo, atrás apenas de Serra Leoa, na África.

De acordo com o índice de Gini para medir a desigualdade de renda em valores que vão de 0 a 1 (este último indicando a desigualdade absoluta) o Brasil situa-se em 0,60, superado apenas e muito ligeiramente por Serra Leoa, com 0,62.

Esta pequena distância entre os padrões de injustiça entre o Brasil e Serra Leoa significa que uma ligeira melhoria na distribuição de renda nesse país africano faria do Brasil o campeão mundial nessa categoria de negação de direitos elementares a que se refere Diógenes ao repreender Alexandre.

Segundo dados da pesquisa Radar Social, realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 1% dos brasileiros mais ricos detém uma renda equivalente à da parcela formada por exatamente a metade da população brasileira mais pobre (86,5 milhões de pessoas).

Como uma desigualdade tão absurda não se constrói ao longo de uma década, ou ao longo de um único mandato político, a conclusão inevitável é que se trata de uma herança histórica, uma construção que consumiu séculos de injustiças em todos os sentidos.

Evidentemente, e ainda para sermos fiéis a Diógenes, isto não significa que abusos do sistema de poder, qualquer que seja o grupo que tenha se apossado dele, deva ser tolerado – contraponto que tende a ser ignorado por uma visão unilateral da história.

O problema deste país, que a imprensa em sua quase totalidade ignora profundamente, não é pontual, nem tópico, mas sistêmico e histórico. Se tivessem consciência disso, os editores, diretores de redação e publishers teriam outro foco para o tratamento do noticiário e neste caso poupariam os leitores com a máxima utilizada por Diógenes contra Alexandre: ‘Não me tires o que não podes me oferecer’.