A reação de vários governos e de parte da imprensa mundial contra o site Wikileaks e seu criador, Julian Assange, corre o risco de se transformar num tiro no pé, caso os desafetos do polêmico ativista australiano não se dêem conta dos rumos que o caso está tomando.
O debate mundial deflagrado pela divulgação de quase 250 mil documentos secretos da diplomacia norte-americana acabou transformando Assange numa personalidade mundial e, ao que tudo indica, num ícone da polêmica sobre o livre fluxo de informações na internet. É o diz o sociólogo Manuel Castells, num artigo [1]sobre o caso Wikileaks, talvez o melhor texto já publicado sobre o caso nas últimas semanas.
As acusações ao fundador do Wikileaks começam a se mostrar frágeis e controvertidas. A principal delas é a de que ele pôs em risco a segurança norte-americana ao divulgar documentos secretos acumulados ao longo de quase 10 anos.
A acusação feita por autoridades de Washington, e referendadas por parte da imprensa norte-americana, esbarram na informação de militar do exército dos EUA, Bradley Manning, que está sendo investigado sob a suspeita de ter baixado ilegalmente 150 mil documentos do Departamento de Estado. Manning seria a fonte original dos documentos divulgados pelo Wikileaks.
Esta informação foi endossada pelo ministro de Relações Exteriores, e ex-primeiro ministro da Austrália, Kevin Rudd, para quem a culpa do vazamento das informações é dos Estados Unidos. Mas o debate sobre a autenticidade dos documentos e da identidade dos autores pelo vazamento acabou sendo ofuscado por dois outros fatos.
O primeiro é a controvertida acusação de estupro feita por duas mulheres suecas, segundo as quais Assange não teria interrompido um ato sexual consensual mesmo depois do rompimento da camisinha que ele usava. Na Suécia, o tema pode ser sério e justificar uma ação judicial, mas noutros países pode facilmente ser associado a fatores bem menos graves do ponto de vista penal e policial.
Mas como Assange está no meio de uma polêmica mundial envolvendo interesses muito fortes, a acusação de estupro foi rapidamente endossada pela Interpol, que lançou uma ordem mundial de captura. Esta semana, em Londres, ele se entregou à Scotland Yard e ganhou o status de personalidade mundial. Seus “15 minutos” de fama podem acabar se estendendo para mais de uma semana.
A outra conseqüência é o inicio de uma guerrilha cibernética de dimensões nunca vistas na internet. A pressão norte-americana levou os sites Amazon e PayPal a suspender as operações comerciais com o Wikileaks, mas em compensação o Facebook resolveu manter a página da organização em sua rede social. Além disso começaram a pipocar pelo mundo “espelhos” do site da Wikileaks com o objetivo de ampliar a divulgação dos documentos secretos. Em questão de dias surgiram mais de 700 “espelhos”.
Assange disse, pouco antes de ser preso, que ele ainda tem cinco gibabytes de documentos secretos e que vai divulgá-los em breve. Isto equivale mais ou menos a uma pilha de documentos em folhas de papel com 45 metros de altura[2]. A ameaça tanto pode ser um blefe como pode ser real, o que certamente elevará a temperatura do debate em torno da figura deste australiano de 39 anos, que está sendo chamado de jornalista, mas que na verdade é um programador autodidata, porque nunca concluiu o curso de física e matemática, em seu país .
Ao focar na personalidade do fundador do Wikileaks, os desafetos de Assange procuram desviar o rumo do debate para um espaço que lhes parece mais favorável. Segundo pessoas que convivem com Assange, ele não é nenhum santo ou modelo de comportamento sexual, e portanto é mais vulnerável perante a opinião pública mundial do que o princípio da liberdade no fluxo de informações do qual o Wikileaks é hoje um paradigma mundial.
A batalha está migrando para o terreno complexo das percepções onde vale mais a versão do que o fato. Para alguns isto equivale a um desvio grave, mas, para quem lida com a opinião pública, a versão pode passar a fato a ser levado em conta na análise contextual, independente da ausência de sua correlação com o que se poderia chamar de verdade.
As acusações de estupro certamente irão alimentar um debate picante sobre o comportamento de Assange, que ficará em evidência tanto pela sua performance na cama quanto pelo seu projeto na web. E a multiplicação de espelhos do Wikileaks pode ampliar a polêmica mundial sobre a liberdade no fluxo de informações na web, muito além do que esperam e desejam as autoridades norte-americanas.
[1] Artigo publicado no jornal espanhol La Vanguardia, no dia 30/11
[2] Um gigabyte equivale a uma pilha de papel com 9,1 metros de altura.