Passa apenas de raspão pelo jornalismo o materião de capa – quase 8 mil palavras – da última revista de domingo do New York Times. Mas ela embute um problema jornalístico da maior importância.
Intitulado “Será que sabemos mesmo o que nos torna saudáveis?”, o texto é do escritor Gary Taubes. O homem gosta de mexer num vespeiro. Está para sair o livro dele “Boas calorias, más calorias: desafiando a visão convencional de dietas, controle de peso e doença”.
No artigo para o NYT ele trata de explicar por que as verdades médicas têm prazos de validade: a de ontem é rejeitada hoje e a de hoje poderá perfeitamente bem expirar amanhã.
O exemplo preferido do autor são as idas-e-vindas da medicina em relação à chamada terapia de reposição hormonal para mulheres a partir da menopausa.
Em meados de 1990, o establishment médico americano em peso recomendou a ingestão de hormônios para prevenir doenças do coração e osteoporose.
Em 2002, o mesmo establishment decretou que esse tratamento, à base de estrogeno, trazia mais riscos do que benefícios à saúde feminina.
Agora, a verdade oficial parece ser “depende”.
Para dar conta desses e de outros zigue-zagues, Taubes relata ao leigo como os pesquisadores tiram as suas – precárias – conclusões.
Essencialmente, eles procuram estabelecer relações de causa e efeito. A mais famosa delas, por ser incontestável, é entre fumo e câncer de pulmão.
Pois bem, o que é uma notícia, uma reportagem, um comentário, um editorial, um periódico inteiro, se não uma sequência praticamente infindável de relações entre fatos, pessoas, idéias, situações.
Mas a armadilha que espreita a ciência médica, no caso, espreita o jornalismo, dia sim, o outro também.
Nas palavras de uma autoridade médica citada no artigo: “A associação entre dois eventos não é o mesmo que uma relação de causa e efeito entre eles.”
Mal ou bem, a ciência desenvolveu e continua a desenvolver métodos para não confundir o que parece (o fato X supostamente gerando o fato Y) com o que é (os fatos X e Y se relacionam, sem que um determine o outro, no entanto).
Só que imprensa não é ciência. Mesmo quando se diz que o jornalista é o historiador do presente, devagar com o andor: muita gente boa acha que história não é bem ciência, mas um gênero literário.
Embora não sendo ciência, o jornalismo tem como objetivo primário contar histórias feitas de fatos. Fatos quase sempre ligados entre si, mas não necessariamente porque um decorra do outro. E fatos passíveis de verificação objetiva por terceiros, como na atividade de produção de conhecimento chamada ciência, mesmo que o jornalista não possa, nem deva, ter pretensões à objetividade científica.
Para mal dos pecados, os fatos que interessam à medicina, são o que são: hábitos de vida, hereditariedade, reações orgânicas – para citar três entre muitas centenas. Os pesquisadores poderão, ou não, ligar adequadamente os pontos entre eles para tentar neutralizar aqueles capazes de fazer mal à saúde, em determinadas condições. Se acertam ou erram é porque souberam, ou não, fazer as conexões apropriadas e “desprovar”, ou não, crendices tipo manga com leite faz mal – para citar uma das mais inócuas, até.
Já os fatos jornalísticos muitas vezes não estão aí por geração espontânea: são construções deliberadas para atender a interesses de toda espécie.
Na galáxia de situações de que se ocupa a imprensa, consultores de comunicação, marqueteiros, relações-públicas e outros especialistas na tal formação da opinião são pagos não raro para dar ao jornalista – e, por meio dele, ao leitor – a ilusão do fato, a contrafação do factóide.
Para se manter imune a eles, a mídia tem muitíssimo menos anticorpos do que os epidemiologistas e os autores de testes clínicos que tentam desvendar o que influii no surgimento, no desenvolvimento e na distribuição das enfermidades numa dada população, para quem sabe, remediá-las – e não agravá-las.
Basta citar o dado elementar que a maioria dos jornalistas conhece menos do que deveria a maioria das situações a serem metamorfoseadas em notícias.
Juntem-se a isso os problemas abissais do modo de produção da informação destinada ao público, ainda mais leigo por sinal, e as muito humanas preferências e ojerizas de quem apura, edita e publica informações.
A probabilidade de um órgão de mídia juntar, por inadvertência ou de caso pensado, jacus e garças é incomparavelmente maior do que a capacidade do leitor de identificar, no noticiário e nas colunas de opinião, isso que os estatísticos chamam de correlações espúrias.
Pensem nisso ao abrir um jornal ou revista. Parafraseando o Observatório da Imprensa, vocês nunca mais irão lê-los do mesmo jeito.
P.S.
O artigo do NYT pode ser acessado pelo link www.nytimes.com/2007/09/16/magazine/16epidemiology-t.html?r= 1&adxnnl=1&oref=slogin&adxnnlx=1190201745-NXp03Uuiy5+8FWt3MbxzVw
P.S.2
E por falar em NYT. Desde hoje o acesso ao conteúdo integral da sua edição online voltou a ser gratuito. A imprensa noticia que o Wall Street Journal, agora controlado por Rupert Murdoch, fará o mesmo até o fim do ano.
Enquanto isso, desde o mês passado o Globo passou a cobrar R$ 35,90 mensais pelo acesso à sua edição online…
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