Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Sociólogo critica reação de mídia e academia à violência

O professor emérito da UFMG Fábio Wanderley Reis não acredita em soluções rápidas, de natureza policial ou jurídica, para a onda de criminalidade violenta que o país atravessa. Ele critica a maneira como a mídia e a academia se entrosam num coro que tem muita vocalização de descontentamento e indignação, mas pouco estudo sério.


O cientista político é pessimista quanto ao quadro de criminalidade violenta que o país vive. Em artigo publicado segunda-feira (26/2) no jornal Valor, do qual se tornou colunista semanal em janeiro, ele escreveu:


(….) As condições sociais que produzem a expansão da criminalidade e da violência estão aí para ficar, ligadas como se acham à ruptura acelerada – num Brasil de repente urbano e mobilizado, mas ainda inaceitavelmente desigual – da psicologia própria à estrutura de ´castas´ de nossa sociedade tradicional e escravista. Qualquer projeção lúcida da situação atual não pode deixar de ser pessimista, e, com tudo o que se mostre imperioso no plano da eficiência policial ou do código penal, não há alternativa à ação política empenhada em reduzir o fosso social longamente construído”.


Eis a entrevista que ele deu ontem ao Observatório da Imprensa.


A confusão entre denúncia e política pública


Numa entrevista dada ao Jornal da Unicamp em dezembro de 2004 [clique aqui para ler] o senhor disse o seguinte:


Há alguns anos, ao examinar um programa de pós-graduação em ciência política de uma de nossas grandes universidades, constatei que os alunos de doutorado não sabiam reagir de maneira minimamente inteligente diante da pergunta sobre como é que os trabalhos que estavam fazendo se diferenciava do trabalho que algum jornalista pudesse fazer sobre o mesmo tema. Eles ficaram perplexos. Isso é clara indicação de que há alguma coisa errada. (….) Com muita freqüência, os especialistas acabam não fazendo mais do que vocalizar as preocupações do leigo, do cidadão. JU – O que ocorre também no caso da mídia. Fábio Wanderley Reis – Sim, mas no caso dos jornais, em alguma medida, isso é justificável. O jornal pretende ser o veículo, entre outras coisas, que canaliza as preocupações do cidadão. Do cientista social, porém, se espera algo mais do que a denúncia da fome dos famintos… É preciso que haja uma contribuição específica na condição de analista. Quando vejo um trabalho de um instituto acadêmico relacionado com o tema da violência, o que quero, antes de mais nada, é análise. É a informação factual envolta na análise adequada, que enriqueça a compreensão do fenômeno, e não, por exemplo, a mera manifestação de indignação”.


O senhor concorda com a idéia de que no processo de saída da ditadura o simples fato de denunciar foi confundido com ação em relação àquilo que se denunciava? Ou seja, que a denúncia já era entendida como parte da solução?


Fábio Wanderley Reis – Eu acho que isso sem dúvida é parte da coisa. Sobretudo num certo casamento negativo, por aspectos importantes, entre o que se faz na academia e a mídia, acaba-se tendo na mera manifestação da indignação, que ressoa publicamente, algo que supostamente justifica o prestígio acadêmico.


No limite, acaba-se tendo o prestígio acadêmico determinado por até que ponto se aparece na imprensa ou não. E para aparecer na imprensa, o que, com muita freqüência, se espera? Ou, pelo menos, o leitor espera que você xingue, que você mostre a indignação, que você denuncie a fome dos famintos, a violência dos violentos, etc.


Muito furor, pouco estudo


Estudo mesmo acaba vindo pouco. Há pouca sociologia consistente da coisa, o que há é esse furor. E eu não tenho a menor dúvida de que há esse equívoco, no plano acadêmico, sem a menor dúvida. Quer dizer, você cria um instituto de estudos da violência e em cada evento que é objeto de notícias a respeito da violência, você é entrevistado e o que você faz é xingar a violência.


Obviamente, tem-se que esperar que o acadêmico dedicado ao tema possa produzir mais do que isso, possa produzir análises que possam servir de fundamento ao diagnóstico adequado da situação e, eventualmente, a receitas, a prescrições sobre o que fazer, como agir. E, nesse lado, nós estamos claramente devendo.


A academia está devendo e acho que esse acoplamento perverso com a imprensa tem um efeito negativo. A imprensa procura a academia a respeito e, com muita freqüência, o que ela encontra é simplesmente uma certa ressonância do ânimo de denúncia, do ânimo de indignação que popularmente se encontra.


Uma certa santificação da opinião pública


A imprensa, falando uma linguagem popular, se tivesse mais juízo cobraria um patamar diferente de produção de material pela academia. Há vinte e tantos anos, na Política do Jornal do Brasil, chegamos a pedir que fosse proibido mandar da fotografia determinadas fotos – isso ainda era feito fisicamente –, para que não fossem ouvidos sobre todos os acontecimentos os mesmos seis ou sete personagens de sempre. Ainda hoje, se Fulano, celebridade do mundo do espetáculo, começar a falar sobre violência, será procurado durante dez anos para falar disso, diga ele coisas sérias ou não. Não falta na imprensa exigir um padrão diferenciado de produção universitária? A imprensa tem prestígio, tanto que amolda intervenções…


F.W.R – Acho que sim, sem dúvida, ela molda e acho que o que há de especialmente negativo é que ela tende a se amoldar àquilo que ela percebe como sendo o que é desejado, o que é, digamos, a opinião pública, o que é, afinal de contas, o mercado para o qual ela vende.


Um exemplo que me ocorre: o tom que caracteriza boa parte das matérias da Veja. Eu me lembro de uma matéria na Veja em que se tratava de noticiar uma briga entre deputados, que se xingaram, os dois se chamaram por apelidos pejorativos, que desqualificavam. A Veja começava a matéria informando sobre esses apelidos e dali para a frente se referia aos personagens envolvidos pelos apelidos pejorativos, o que é característico da revista, mas uma coisa impensável numa imprensa mais séria, que daria a informação objetivamente, ao invés de introduzir, já ali, digamos, a zombaria que ela percebe como sendo a zombaria que o leitor típico faria.


Há uma certa santificação da opinião pública que tem claramente efeitos negativos, deletérios, e, sem dúvida em relação especificamente à crítica que nós estamos fazendo, acho que seria, sim, possível esperar que houvesse maior seriedade, inclusive na relação com a academia: cobrar ou se interessar por coisas que significassem aportar algo de mais efetivo ao entendimento dos assuntos e tentar sair dessa coisa de repercutir simplesmente na base, com muita freqüência, do berreiro da opinião pública que, com freqüência, é um berreiro torto, um berreiro que produz fenômenos que correspondem a patologias claras, o politicamente correto, etc.


O movimento que tivemos recentemente e que continua posto, de certa maneira, pelo voto aberto no Congresso, significa o quê? Que nós queremos que o deputado se amolde àquilo que se espera dele, no voto dele? A opinião pública tem que ser unânime? E se houver mais de uma opinião? Como é que ele vai confrontar o que se percebe como sendo o grosso da opinião pública com o que quer que seja que o curral eleitoral dele, eventualmente, prefere?


Patologias que vão do politicamente correto ao linchamento moral


O que é legítimo? Há certamente muita distorção que eu tenho a impressão de que a imprensa não só favorece, mas ajuda a criar, inclusive. É claro que a imprensa tem um papel importante na produção da opinião pública. Mas se, por um lado, a opinião pública é uma parte autêntica e crucial de uma dinâmica democrática, por outro lado ela é fator de patologias várias, que podem assumir a forma mais branda do politicamente correto e podem assumir a forma do linchamento moral, com conseqüências que podem ser claramente antidemocráticas. Que, aliás, são manipuladas com muita freqüência por governos ditatoriais, autoritários, criando um clima no qual se impede a comunicação adequada e se cria a impressão de que determinada posição favorável ao governo, ou o que seja, é a posição dominante, quando, na verdade, nem isso é.


O que aconteceu com os regimes socialistas há algum tempo atrás? Eu me lembro de participar de reuniões acadêmicas nos Estados Unidos com gente da Europa, especialistas nas questões da Europa Oriental, do socialismo, que não viam a menor possibilidade – isso ainda em 1983 – de que o Estado socialista viesse a abrir ou a ruir e a nem existir, e, no entanto, a coisa estava minada, principalmente o que permitiu que aquilo caísse como um castelo de cartas foi exatamente a percepção de que, ao invés do consenso a favor que se imaginava, o que havia – e isso ficou evidente, de repente, para o conjunto dos cidadãos – era uma maioria contra, eventualmente quase uma unanimidade contra.


A ignorância pluralística


Estou apenas explorando uma conexão que é um pouco mais complicada do que o tema específico de que estamos falando e que tem conexões, me parecem, importantes com ele, a conexão entre aquilo que uma certa literatura de Psicologia Social costuma designar como fenômeno da ignorância pluralística. Por um lado, o fato de que, com freqüência, com as pessoas não sabem o que as outras pensam e a possibilidade de produzir em cima disso uma suposta opinião pública que, na verdade, não se sabe direito opinião de quem é e acaba tendo impactos negativos.


Poderíamos dar como exemplo, também, o apoio que Adolf Hitler teve na opinião pública.


F.W.R – Ele chegou por eleição. Eu costumo ter o exemplo do Hitler presente em alguns debates com Simon Schwartzman [sociólogo, ex-presidente do IBGE], a respeito da distinção que ele fazia há tempos entre representação e cooptação, um contraste entre uma representação que supostamente se teria em São Paulo, uma coisa mais democrática, mais autêntica, e a cooptação do que ele chama de eixo Minas-Rio e do resto do Brasil, que seria um sistema autoritário, em última análise, lembrando precisamente que Hitler seria um caso de representação, nesse sentido. Afinal de contas, ele foi eleito. Chegou lá.


Claro que ele empregou métodos violentos. Eliminou fisicamente boa parte da oposição. Mas teve apoio popular. Mussolini teve apoio popular. Ficou 23 anos no poder. Voltando ao tema da ligação entre mídia e academia: pode-se dizer que contribuiu para o fracasso das políticas públicas na área da segurança uma certa relação entre jornalistas e academia, no sentido de que a academia falhou no diagnóstico da criminalidade no Brasil e esse é um dos fatores que fazem com que a mídia tenha falhado também? O senhor concorda com essa hipótese?


Séculos de sociedade escravista


F.W.R – No fundamental eu concordo, com uma reserva de que, em certo sentido, estávamos fadados a falhar, quer dizer, talvez não seja uma questão pura e simplesmente de diagnóstico adequado, seja por parte da mídia, seja onde a responsabilidade seria maior – por parte dos cientistas sociais, supostos especialistas no assunto ou em assuntos correlatos.


Na minha avaliação, há precisamente um processo de maior alcance com o qual dificilmente poderíamos ter lidado com mais eficiência nesse período recente em que a violência se intensificou – que, afinal de contas, é o período de uma geração, de um quarto de século, aproximadamente, em que tivemos essa intensificação dramática da criminalidade, da violência.


O que eu estou querendo sugerir com isso é, na verdade, aquela questão social que eu toco no artigo que chamou sua atenção ontem no Valor, se mantém, ela foi produzida ao longo de vários séculos em que construímos uma sociedade escravista, uma sociedade extremamente desigual e depois nós temos um século e pouco em que mal e mal fizemos outra coisa, caminhou numa direção diferente.


Permanece a desigualdade, muda a psicologia social


Com isso produzimos uma situação onde temos uma uma sociedade extremamente desigual, por outro lado, um processo mais recente, do último século, onde a psicologia coletiva associada secularmente com isso – que é uma psicologia conformista, uma psicologia de casta, uma psicologia de escravo – é alterada com a urbanização do país, com a exposição aos meios de comunicação de massa, e se passa a ter na população destituída, crescentemente, a presença de um ânimo reivindicante, de um ânimo de frustração.


Se se combina isso com a economia da droga, por exemplo – que é, evidentemente, um componente importantíssimo, que vem um pouco de fora, um pouco excrescente –, tem-se um caldo de cultura onde, me parece, floresce mais ou menos forçosamente o que temos visto.


O que seria preciso para que não vivêssemos? Seria preciso que tivéssemos feito, de certa maneira, o que a Argentina fez. A Argentina, no final do século XIX, tinha resolvido o problema do analfabetismo. O Brasil está às voltas com o analfabetismo até hoje. Nós nunca chegamos a atacar a sério o desafio do investimento educacional, e eu tenho a impressão que isso tem muito a ver com a desigualdade e com o fato de que, na verdade, a elite brasileira, durante muito tempo, não percebia a população ex-escrava, que veio do escravismo, como parte real da população brasileira, do povo brasileiro.


Duas categorias de cidadãos – e de notícias


Era “essa gente”. “Educar essa gente?”. Eu tenho usado essa expressão. Essa coisa do “essa gente” é muito freqüentemente aplicado à parte pobre da população, à parte negra, o que indica claramente uma atitude que, como eu digo, tem a ver com casta, é um pouco se tratar de outro mundo, que me parece explicar um aspecto, no qual eu toco de passagem no artigo, que é a diferença do impacto que tem a violência e a criminalidade nas populações de cidadãos de segunda classe, de segunda categoria nas periferias das grandes cidades, das chacinas banais, por um lado, e o impacto efetivo que tem quando as vítimas são de classe média ou para cima.


Aí é um drama, não só a imprensa repercute de forma muito mais dramática, como a resposta da opinião pública é também muito mais dramática. Então, eu acho que o fundamental nessa coisa está na divisão que subsiste e, na minha aposta, olhando para o futuro o que dá para dizer é que isso vai piorar. Não vejo como nós vamos conseguir agir com eficácia no sentido de mitigar a violência, em um futuro que dá para ver.


Mais expectativas frustradas


Até porque as ações destinadas a melhorar, as pequenas melhoras que é possível introduzir de maneira rápida, num prazo mais ou menos curto, tendem a agravar a disposição reivindicante, o sentido de frustração. As pessoas são expostas mais intensamente a aspirações e expectativas que não podem ser atendidas de maneira rápida. Então, o que vamos ter, na minha avaliação, é a piora do problema relacionado com criminalidade e violência.


A respeito dessa coisa eu sou muito pessimista. Acho que é possível fazer, topicamente, vários tipos de coisas, agir na faixa da educação, agir no plano legal, agir no que se refere à repressão mais eficiente, em diversos outros aspectos. Mas a ação mais efetiva é a que envolve um amadurecimento a longo prazo, inclusive educacional, envolve um amadurecimento no período de mais longo prazo, de algumas décadas, pelos menos. E, enquanto isso, eu acho que o que nós temos pela frente é um vale sombrio. Na minha avaliação, a coisa é tão ruim quanto isso.


Desastre no tempo de uma geração


Na mesma edição do Valor em que foi publicado seu artigo, ontem, há uma importante entrevista do procurador Marco Vinicio Petrelluzzi, ex-secretário de Segurança Pública de São Paulo, em que ele menciona queda dos índices de violência. Diz mesmo que a ‘violência urbana crescente é um mito’.


F.W.R. – Esses dados de que ele fala são os dados que envolvem de 2001 para cá, 2001, 2002, isso é outro dia. Mas isso prova que é possível, sim, obter alguns resultados positivos no plano da ação policial, da ação legislativa. Numa perspectiva de prazo mais longo, numa perspectiva de geração, se comparamos o que acontece na última geração, dos últimos 25 anos com o Brasil anterior a isso, não há dúvidas de que as coisas pioraram, e pioraram dramaticamente.


A projeção que cabe fazer, as razões sociológicas mais consistentes justificariam que se projetasse o ruim nessa coisa. Eu acho que a tendência é que se tenha o agravamento das tensões pela combinação da manutenção da desigualdade radical com um elemento novo, que é um elemento da alteração da psicologia associada a essa desigualdade radical.


Estamos vivendo num país que é urbano, mobilizado, atento, onde todo mundo quer calçar o tênis da moda, para usar uma frase do traficante num documentário do Moreira Sales, “Eu também quero meu Nike” [Notícias de uma guerra particular; a frase é dita por Marcinho V.P., assassinado posteriormente num presídio de Bangu], que é expressivo da postura geral.


Droga acirra a crueldade


Pode-se pensar que uma parte dessa violência é uma leitura feita pelo bandido, pelo fora-da-lei, do arbítrio estabelecido durante a ditadura, quando o Estado executava pessoas sem julgamento…


F.W.R – E se tem, além disso, o componente da economia da droga. Eu tenho impressão de que boa parte da crueldade, do destempero, da falta de qualquer contemplação, que leva a coisas como o incêndio dos ônibus, provavelmente está associado com o fato de que as pessoas consomem drogas e que, em muitos casos, crimes como esse são cometidos sob o efeito de drogas.


Além disso, essa economia leva à criminalidade de uma maneira mais intensa, mais ampla. Não estou querendo negar que você possa ter razão ao chamar a atenção para a experiência da ditadura, da violência da ditadura e da própria tecnologia que ela produziu. Acho que acabamos tendo um acúmulo de fatores negativos.


Nem ‘fazer tudo’, nem cair no ‘ativismo legalista’


A questão social, a atenuação da desigualdade, seria para o senhor uma espécie de pré-condição para que nós tivéssemos uma redução dos níveis de criminalidade?


F.W.R. – Eu formularia de uma maneira um pouco diferente. Obviamente, não se trata de adotar nenhuma daquelas duas posições extremadas que eu enuncio logo no começo do artigo. [“Com todos os equívocos a que possam prestar-se, as ligações da violência com a ´questão social´ brasileira são reais e complicadas. Elas impõem o desafio de equilíbrio entre dois extremos: de um lado, à esquerda ou à direita, certa postura maximalista que insiste, a propósito do empenho de se fazer qualquer coisa, na necessidade de se fazer ´tudo´, ou muito mais (o que é sempre certo, ai de nós); e, de outro lado, um artificialismo ou ativismo legalista pouco atento às complicações do problema”.]. Ou seja, no primeiro caso, a posição, muito freqüente, de que é preciso fazer tudo para fazer qualquer coisa, o que, evidentemente, é inaceitável. “Nós temos que fazer a revolução”, como diz a esquerda, ou então, para falar a linguagem de alguns jornais da grande imprensa, “Bolsa Família + Creche + Emprego + isso + aquilo”, enfim, tudo o que supõe a política social executada com êxito, os problemas resolvidos. E o outro extremo, do ativismo legalista.


Não dá para cair em nenhum desses dois extremos. O foco ali é simplesmente de dizer: “Olha, nós estamos com um problema muito mais sério, temos que estar prevenidos para o fato de que a solução é muito difícil, temos que estar atentos para o vale sombrio que temos pela frente e agir com o olhar posto num futuro um pouco mais longínquo”.


Há razões para pessimismo


Acho que é ilusão pretender que possamos, efetivamente, resolver o problema da violência nas circunstâncias que estão criadas. Há muitas boas razões para pessimismo. A projeção do que há de mais consistente, o longo, pesado legado da sociedade escravista, o abraço do cadáver de séculos de construção de uma sociedade escravista com, agora, a erosão da psicologia associada com isso e, portanto, a criação do sentimento mais reivindicante, do ânimo de frustração, na sociedade urbana, mobilizada, e tudo mais, esse caldo de cultura, ainda mais com o elemento excrescente, que vem de fora e se associa a isso, que é a dinâmica da economia da droga, acho que cria um quadro que não vamos resolver, seja com a alteração do Código Penal, seja com alteração na idade em que as pessoas se tornam imputáveis, seja com Força de Segurança Nacional. Não se trata de dizer que nós não vamos adotar as medidas que são necessárias nessa faixa, é claro que sim. Mas é bobagem pensar que com isso nós vamos estar resolvendo.


Eu acho que, como disse, pela frente o que dá para enxergar é essa coisa piorando. Ainda que possa haver êxitos tópicos, como os apontados na entrevista do Petrelluzzi, e certamente pode haver, mas na verdade me parece que o encaminhamento mais efetivo da solução do problema é uma tarefa para gerações, pelo menos uma geração, algumas décadas, se tudo passar bem.


Mas os dois últimos governos não têm lutado para diminuir a desigualdade?


F.W.R – Há um tropo da literatura sociológica que é esclarecedor: há um estudo famoso executado pelo [Theodor] Adorno, que migrou para os Estados Unidos e que lá em Nova York, no Instituto que ele criou, fez um estudo que se transformou num clássico, que é sobre o exército americano, The American Soldier. Uma das coisas notáveis que esse estudo mostrava é que o grau de frustração em relação às oportunidades de promoção era maior exatamente nos batalhões, nos regimentos onde as promoções eram maiores.


Um dos aspectos que eu quero destacar é isso: você tira o escravo de séculos do fundo do buraco, mostra para ele um mundo novo, bota diante da televisão, mostra o tênis Nike, ou Mizuno, e diz que não tem para ele, a rigor, ou que ele tem que esperar o bolo crescer para um dia sobrar para ele.


País campeão de desconfiança


Deve-se considerar também que existe uma afronta à autoridade, que já existia no passado, mas não como se tem hoje, devido ao fato de que a autoridade não soube honrar seu papel. E o mais visível é a polícia fardada, que, aliás, hoje são todas as polícias. Isso se vê muito nos jogos de futebol, dentro e fora dos estádios. Parece haver, por um número cada vez maior de pessoas, a percepção de que se trata de bandidos situados do lado da lei.


F.W.R – Há uma simbiose, uma mescla entre a criminalidade de um lado e o próprio aparato que supostamente deveria reprimir, combater a criminalidade. Essa mescla assume várias formas diferentes. Eu acho que isso acaba sendo parte de um sistema de desmoralização. Há um dado que eu costumo citar nesse tipo de discussão, extremamente revelador, é que o Brasil é o campeão mundial da desconfiança.


Há pesquisas, que na última vez que eu vi, envolviam 65 países, de níveis de desenvolvimentos diferentes, de culturas diferentes, de religiões diferentes – muçulmana, católica, confucianos –, onde o Brasil, reiteradamente, aparecia como o campeão de respostas negativas diante da pergunta sobre se é possível, em geral, confiar nas pessoas.


No Brasil, só esquálidos 3% de respostas positivas aí. Isso parece tão absurdo que as pessoas têm testado, verificado de novo, e dá sempre nessa faixa. É claro que isso tem a ver com uma certa desmoralização que é geral, que tem a ver com corrupção, com o fato de que a polícia não é confiável. [Ver site Word Value Survey e Ronald Inglehart.]


(Transcrição de Raiana Ribeiro.)