Para quem ainda possa supor que a Newsweek cometeu uma mancada ao noticiar, com base em uma fonte oficial anônima, que um militar americano jogou um exemplar do Alcorão numa latrina na base-presídio de Guantánamo, o New York Times de hoje confirma – não propriamente a história da revista, mas que ela é muito mais plausível do que os seus detratores admitem (ou gostariam de admitir).
“Documentos recém-liberados”, abre a matéria de Neil A. Lewis, “mostram que os detentos de Guantánamo se queixaram repetidamente a agentes do FBI sobre o manuseio desrespeitoso do Alcorão por militares e, em um caso de 2002, disseram que eles jogaram um Alcorão na privada e puxaram a descarga”.
Embora sem chegar a esse extremo, denúncias do gênero, feitas por ex-presos muçulmanos e reiteradas pela Cruz Vermelha Internacional, não são novas. Mas elas aparecem em papéis oficiais americanos com sintomática frequência.
No caso, segundo o Pentágono, o autor da denúncia, em novo depoimento no último dia 14, “não foi capaz de consubstanciar a acusação”, conforme o fraseado do NYT. Além do mais, segundo um porta-voz do Departamento de Defesa, o acusador é um combatente inimigo” – o que, presumivelmente, desqualifica por definição qualquer coisa que diga.
A reportagem do NYT trata a questão de forma mais matizada. “As revelações não respaldam as afirmações específicas da nota da Newsweek”, diz o texto. “Entretanto, reforçam os argumentos de defensores de direitos humanos e advogados de prisioneiros de que as acusações de deliberado manuseio inadequado do Alcorão eram comuns.”
Jameel Jaffer, advogado-sênior da União pelas Liberdades Civis na América (ACLU, na sigla em inglês, é citado como tendo dito que os erros no relato da Newsweek foram impropriamente usados para desacreditar outras informações sobre práticas abusivas em Guantánamo “que não se baseavam em fontes anônimas, mas em documentos governamentais, relatórios redigidos por agentes do FBI.”
A propósito, penso que é leitura obrigatória o artigo de Eugene Robinson, do Washington Post, “Quando a mídia é usada para um truque de mágica”, transcrito no Estado de ontem e ontem mesmo reproduzido no site do OI que hospeda este blog.
Amostra: “O que foi que Newsweek fez de errado além de usar a preguiçosa expressão “fontes disseram” em sua matéria sobre a suposta profanação do Alcorão, quando na verdade havia apenas uma fonte? Havia, afinal, uma fonte bem situada, segundo Newsweek, e foi a fonte que cometeu o erro, dizendo depois que não poderia ter certeza que viu aquele específico ato de profanação – pôr o livro sagrado na privada – citado numa reportagem específica sobre abusos contra prisioneiros. O repórter escreveu com exatidão que ouvira uma pessoa em posição de saber. É isso que os repórteres fazem.”
P.S. adicionado às 12:44 de 28/5. Agora é oficial: o Pentágono confirmou cinco casos de ‘vilipêndio’ (conforme a Folha de hoje) do Alcorão em Guantánamo, embora não confirme o episódio da latrina. Pelo andar da carruagem, mais dia, menos dia, a Newsweek terá motivos para se desretratar da nota que fez cair sobre a revista a ira do bushismo e a condenação dos críticos apressados.