Sérgio Torres diz que já andou por todas as favelas do Rio. Nunca se sentiu em casa, mas nunca deixou de entrar numa favela com medo de ser alvo de violência. Agora, tudo isso mudou. Torres também relata o medo que gente da própria polícia sente da milícia, porque ela é formada por policiais e ex-policiais, enquanto os traficantes entocados nos morros são pessoas com menores possibilidades de identificar e perseguir, na cidade, desafetos ou inimigos. O repórter da Folha não aceita o uso genérico da expressão “crime organizado”.
Sérgio Torres – Eu trabalho na Folha de S. Paulo desde 1988 e a minha experiência jornalística é muito diversificada. Embora eu esteja conversando com vocês sobre segurança, não é só isso que eu faço. Por seu uma sucursal pequena, em época de eleição eu faço política; pacote econômico, é economia; preparação da Copa do Mundo, futebol. Já fiz de tudo. Gosto muito dessa área de segurança e gosto de outras áreas também.
Uma coisa que o professor Andrelino falou é a pessoa dessas comunidades desconhecer o direito à cidade.
A minha atividade é bem diversa da de vocês. Eu sou jornalista já há 25 anos, não tenho o dia-a-dia de estudo que vocês têm. Tenho a minha percepção visual e impressionista do que acontece. Conheço muita favela porque ao longo desses anos todos fui a todas elas. Noto que, da mesma forma que o professor Andrelino se referiu ao estranhamento das pessoas dessas comunidades em relação à cidade, de modo geral, eu, que sou uma pessoa de classe média, nasci e moro em Niterói, mãe dona de casa e pai médico, sempre senti esse estranhamento também quando eu entrava na favela. Na década de 80 eu fui a muitas e muitas fazendo reportagens, me sentia fora da minha casa, do meu mundo, mas andava ali com uma certa despreocupação. Isso não ocorre mais. Até o jornal regulamenta nossa atividade hoje nessas comunidades de modo que não ocorra uma tragédia como a que ocorreu com Tim Lopes [assassinado em 2002 por traficantes da favela da Vila Cruzeiro, na Penha, Zona Norte do Rio]. Eu hoje já não vou mais. Tem muito tempo que eu não entro, até porque não tenho feito matérias nesses locais. Mas para entrar eu tenho que obedecer a todo um procedimento que é regulamentado pela nossa redação. E mesmo se não houvesse eu teria algum juízo para não entrar num lugar que é controlado com fuzil e granada. Nem com polícia. Muito menos com polícia.
Medo da milícia
Tive uma conversa na semana passada com um colega de sucursal e ele falou de tráfico, de milícia. Chamou muito minha atenção desde que comecei a escrever sobre milícia, no final do ano passado, o medo que as pessoas têm – policiais, promotores, dirigentes da Secretaria de Segurança, todos eles têm medo da milícia. Não têm medo do tráfico, a não ser quando vão lá dentro. Porque às vezes o traficante de comunidade, vamos dizer assim, esse paupérrimo traficante não sabe nem vir ao centro do Rio, quanto mais localizar alguém para retaliar uma matéria que você faça. A milícia, não: é polícia. Em cinco minutos descobre onde você mora, quem é seu pai, quem é sua mãe, sua conta bancária, acessa tudo.
Há, a partir desse noticiário sobre milícia, do segundo semestre do ano passado para cá, muito jornalista ameaçado. Justamente pelas facilidades que esses “milicianos” têm de chegar a eles.
Outra coisa: Jacarepaguá. Lá eu percorri algumas comunidades… Quer dizer, a origem da milícia. Rio das Pedras [favela], e a partir dali se difundiu. Conversamos sobre isso da outra vez [debate de 5 de janeiro], que era um certo encantamento do cidadão que vivia na insegurança e agora, em troca de dez reais, digamos, tem um cara meio fardado passando na porta dele e de alguma forma protegendo-o. Na nossa conversa anterior, eu disse: Mas isso vai acabar. Vai chegar uma hora em que eles vão ter medo também. Eu acho que isso está bem perto. A coisa do despotismo deles já está se manifestando nessas comunidades.
Há coisa de duas semanas, um colega de sucursal – eu estava de férias – ficou um tempo na favela Palmeirinha, em Guadalupe, e conversou com um chefe de milícia. A Folha deu destaque a essa matéria. O texto estava bom, tinha uma boa apuração. Ele descrevia o ambiente em que a milícia havia se estabelecido, num imóvel dentro da favela, e tinha um cartaz na porta que era o seguinte: “Seja breve e não entre sem ser convidado caso você não queira ser destratado.” Não é uma relação de cordialidade. ? uma relação de autoridade. O cara está olhando de cima para você. Fica no seu cantinho. Você só entra aqui se eu deixar.
Uma coisa que o professor Paulo falou: que para ele “milícia” não é o termo ideal. Não manifesta bem o que são esses grupos que se formaram.
A primeira vez que eu li sobre milícia, no Globo, deve ter…
Paulo Baía – Veja Araújo. Foi ameaçada.
S.T. – É. Foi ameaçada. Matéria da Vera. Deve ter uns dois anos. Eu não sei se alguém falou para a Vera ou se a Vera, com seu editor, achou aquilo.
Mauro Malin – Foi na edição.
P.B. – Eles [a milícia] se apropriaram.
S.T. – Virou “milícia”. É um termo bom para jornal. Estou falando como jornalista. “Grupo de extermínio” é uma expressão batida.
M.M. – “Milícia” é bom para título, é curto.
S.T. – Eu não sei se mostra bem o que é aquilo, “grupo de extermínio”. Grupo de extermínio na Baixada, em 60, 70, essa milícia hoje deve ter uma atuação um pouco diferente do que era aquilo, não sei.
M.M. – O nome milícia aparece na Baixada num episódio que o professor José Cláudio indica como muito importante, o Motim da Fome, em 5 de julho de 1962. Eu fui conferir na coleção da Fatos e Fotos e está lá: “Os milicianos pagos pela Associação Comercial de Duque de Caxias” (risos).
S.T. – Nem isso nós conseguimos criar… Outra coisa que o professor José Cláudio falou, com a qual eu concordo inteiramente, que é essa questão de crime organizado, ele realmente não existe nessas comunidades. Não dá para considerar uma quadrilha daquelas de boca-de-fumo como crime organizado. Mas a estrutura toda que se beneficia disso é crime organizado.
Andrelino Campos – Qualquer quadrilha é organizada. “Vamos nos reunir ali no bar do Fulano amanhã, duas da tarde, e fazer uma operação às cinco”. Mas daí a falar-se em crime organizado…
S.T. – A definição clássica de crime organizado não bate com o quadro. ノ gente descalça, gente que não sabe sair dali.
P.B. – Os crimes organizados estão no roubo de cargas, no contrabando de armas, no tóxico, na contravenção, no jogo do bicho.