Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Pimenta no banco dos réus (1): “…e ninguém fez nada”

Cinco anos e oito meses depois do crime, começa hoje em Ibiúna, no interior paulista, o júri do jornalista Antonio Marcos Pimenta Neves, 69, homicida confesso da namorada que o abandonara e a quem passara a perseguir obsessivamente, a também jornalista Sandra Gomide, 32.


Nos dias seguintes ao assassínio, escrevi no já extinto site Werbo três textos que ainda considero atuais. Por isso resolvi republicá-los aqui, entre hoje e amanhã.


Este é o primeiro, intitulado: ‘…e ninguém fez nada ‘:


Algum tempo antes de matar a sua ex-namorada Sandra Gomide, a quem demitira ao se separarem, o então diretor de redação do jornal O Estado de S.Paulo perguntou a pelo menos um colega: “Se eu for parar numa penitenciária, será que vocês vão me visitar?”


Depois do crime, esse colega citou a “frase de humor negro”, como sintoma do que passava pela cabeça de Pimenta. Outro jornalista disse que, a rigor, o assassinato de Sandra não o surpreendeu. “Eu temia que ele pudesse matá-la ou se suicidar”, contou. Pimenta foi visto armado na redação. À polícia, disse que tinha recebido ameaças.


Aqueles jornalistas não hão de ser os únicos, dentro e fora da sede dos jornais dos Mesquitas, na Marginal do Tietê, a se perguntar por que, diante de tantos indícios de que Pimenta podia fazer algo de muito ruim a Sandra, mesmo que não viesse a matá-la, ninguém — patrão, colegas, amigos — tomou a única providência que teria impedido o homicídio: internar Pimenta em um hospital psiquiátrico.


Quem mais perto chegou disso, ao que parece, foi o diretor do “Estadão, Ruy Mesquita, ao aconselhar Pimenta a se consultar com um terapeuta de sua confiança. “Então liga pra ele”, teria dito o jornalista, segundo um relato. O patrão ligou, marcou hora — e ele acabou indo ao clínico. Isso, paradoxalmente, amorteceu o ruído de alarme na direção do jornal: pelo menos Pimenta estava aceitando se tratar, a crise seria superada.


Também por uma razão terapêutica — laborterapêutica, no caso — Ruy não quis aceitar o pedido de demissão de Pimenta, depois que este mandara embora a sua ex-namorada, editora de economia. Ruy acreditava que, quanto mais estivesse ele mergulhado na loucura diária de fazer um jornal, menos tempo e oportunidade ele teria para premeditar uma loucura de verdade. O dono do Estadão sabia que, desde a separação, o trabalho era o único aspecto da vida de Pimenta ainda não de todo desestruturado.


Mesmo isso duraria pouco, no entanto. “Estávamos para tomar uma medida a respeito, mas foi tarde demais”, disse ao site no — www.no.com.br — Fernão Lara Mesquita, filho de Ruy, diretor do Jornal da Tarde, provisoriamente no lugar de Pimenta. A medida seria o seu afastamento do jornal, de um modo ou de outro, depois que os Mesquitas ficaram sabendo que ele havia demitido um repórter da editoria de economia só porque estaria ajudando Sandra a encontrar novo emprego. Não é certo que estivesse nos planos da casa uma segunda tentativa de ajudar Pimenta a sair de seu inferno emocional.


A colunista Miriam Leitão associa o fato de ninguém ter feito nada, mesmo quando ficou óbvio que “Pimenta estava incapacitado para dirigir um jornal”, ao que ela considera “a tolerância com as pequenas tiranias nas redações”. É plausível. A redação de um grande órgão de imprensa é uma estrutura fortemente hierárquica — e quanto mais alto o lugar nessa hierarquia maior também costuma ser o componente autoritário das decisões de quem o ocupa.


O diretor de redação de uma revista certa vez afixou na sua sala o “decálogo do chefe”. O primeiro mandamento diz: “O chefe tem sempre razão”. O segundo adverte: “Nos casos em que o chefe não tiver razão, aplica-se o primeiro mandamento”. Na prática, o chefe terá “mais” razão quanto maior for a altura do seu cargo de chefia.


Dito de outro modo, toleram-se mais as pequenas (ou nem tão pequenas) tiranias do editor-chefe do que as do editor-adjunto; do editor-executivo do as que editor-sênior; do editor especial do que as do editor comum.


Talvez tenha de ser assim para que, nas atormentadas condições em que se faz um jornal, revista de atualidades ou programa de notícias no rádio e TV, o produto fique pronto quando necessário, com um número suportável de erros, sem levar uma traulitada demolidora da concorrência, nem contrariar em demasia a orientação do dono.


Mas, na mesma medida em que isso facilita o exercício tirânico do poder, torna difícil uma intervenção reparadora, se o chefe surtar, especialmente quando o patrão confia nele, o estima e tende a descontar das acusações que lhe chegarem a seu respeito o peso das rivalidades profissionais: in dubio pro capo é a norma.


Cria-se assim um ambiente pouco favorável à detecção precoce, ou mesmo nem tão precoce, de que pode rebentar uma bomba nesse nível hierárquico. No caso do Estadão, além disso, o chefe prestes a explodir era visto como uma pessoa “racional e conservadora”, como a ele se refere o diretor de outra empresa jornalística.


É sempre cômodo, depois que o pior acontece, juntar as peças e concluir que estava na cara que o pior ía acontecer. Mas em algumas situações, as peças quase pedem para serem juntadas a tempo.


Em um lugar de trabalho, por exemplo, não se costuma aceitar as atitudes anti-sociais eventualmente esperadas ou suportadas em casa: em regra, a tolerância com o comportamento “anormal” é muito menor nas relações profissionais do que nas relações familiares.


Não é por outra razão que coisas terríveis ocorrem muito mais no lar do que no emprego. Homens espancam mulheres e filhos entre quatro paredes e se conduzem de forma aceitável entre as muitas paredes de uma fábrica, loja ou escritório.


Se assim é, se o desvio do padrão é mais gritante em público do que em privado, seria de imaginar que, numa redação — onde o convívio é mais civil, apesar de tudo, do que em um depósito de materiais de construção — os mecanismos sociais de controle não tardassem a ser acionados quando as pessoas saíssem dos eixos e se tornassem uma ameaça aos outros.


E até que são acionados, quando o problema aparece nos escalões inferiores da hierarquia. Quando o caso é na cúpula, porém, entra em cena a tolerância com as pequenas tiranias, mencionada por Miriam Leitão, que acaba não distinguindo entre prepotência profissional e perseguição pessoal. Junte-se a isso, como foi nesse caso, a regra de que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”.


“Ninguém fez nada”, em suma, menos por uma questão de não querer do que de não poder, dadas as regras do jogo na profissão — e dado que nunca se está plenamente preparado para acreditar no pior.[24.08.00]


Para acompanhar o julgamento pela internet clique em http://ultimainstancia.uol.com.br/index2.html


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