O que faz a foto de uma vereadora petista de Goiânia, Marina Sant´Anna, destacada ao lado da página com noticiário sobre a posse do novo presidente da Bolívia, Evo Morales, se perguntará o leitor do Jornal do Brasil? O título sem verbo – velho sintoma de falta de notícia –, de página inteira, corpo 60, diz: “Relações perigosas do PT em Goiás”. O leitor, que já topou na capa do jornal de hoje (21/1) com uma chamada para essa página 6, encontra no meio do segundo parágrafo uma possível explicação política: “Marina foi uma das principais defensoras do ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares, apontado como um dos operadores do mensalão”.
“Ahhhnn. Certo. A vereadora está metida na grande confusão do PT. O jornal descobriu mais alguma coisa”, deduzirá o leitor. Não, não se trata disso. Trata-se de uma perseguição contra um irmão da vereadora, o repórter especial do O Estado de S. Paulo Lourival Sant´Anna. Ele assinou em 18 de dezembro uma reportagem no Estadão sob o título “O vôo turbulento do capitão Tanure. Como o homem que quer comprar a Varig construiu sua reputação”. Uma reportagem dura.
No dia 21 de dezembro, Nelson Tanure, controlador do Jornal do Brasil e da Gazeta Mercantil, enviou carta a Ruy Mesquita, diretor do O Estado de S. Paulo, em que contesta passo a passo a reportagem, assim como a do dia 19, assinada por Alberto Komatsu, da sucursal do Rio de Janeiro sob o título “Contrato com Tanure prevê fusão da Varig”. Naquele dia se realizava assembléia de credores da companhia aérea que examinou a proposta de Tanure. Como se sabe, ele ficou de fora da tentativa de reestruturação da endividada empresa aérea.
Em 28 de dezembro, Tanure, na qualidade de controlador da Docas Investimentos S.A., fez publicar na Folha de S. Paulo anúncio no qual dizia que iria processar Sant´Anna e Komatsu, que teriam usado “dossiês apócrifos e fontes fictícias, fabricados e disseminados a serviço da concorrência desleal, calúnia, difamação, injúria e do preconceito”. “Concorrência desleal”, imagina-se, não jornalística, mas empresarial. Depreende-se que o Estadão estaria a favor de concorrentes de Tanure.
Gato por lebre
Em 15 de janeiro, domingo passado, o JB abriu duas páginas sob o título “Assassino cultiva o ócio”, em letras garrafais. Tratava-se, aparentemente, de denunciar o fato de que um assassino confesso, ex-diretor de Redação do O Estado de S. Paulo conseguiu evitar até agora, mediante manobras de seus advogados, o júri popular que poderá devolvê-lo à prisão. Essa prolongada liberdade condicional indigna muitos jornalistas e provocou recente manifestação do presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Maurício Azêdo.
A reportagem dizia que a Polícia apura a participação de Pimenta Neves na “falsificação e utilização de dossiê apócrifo, voltado a disputas empresariais”. E chega então ao verdadeiro alvo: “Seu braço direito, quando dava as cartas em O Estado de S. Paulo, Lourival Sant´Anna, também está sendo investigado’. Causava estranheza que, entre as sete fotos publicadas, uma fosse de Sant´Anna, de muito má qualidade.
Num dos seis itens (“retrancas”, no jargão jornalístico) aparecia o eixo das preocupações do JB: “O uso de dossiê criminoso”. Aí se dizia que “os textos [das reportagens de Sant´Anna e Komatsu nos dias 18 e 19 de dezembro] reproduzem trechos do dossiê”. E se informava que “na ausência de providências por parte do Estadão [após o envio da carta de Tanure de 21 de dezembro], a Polícia recebeu, sexta-feira [13/1], notícia crime protocolada pelos advogados Ary Bergher e Raphael Mattos, que representam o JB”.
Jornais silenciam
Se tivesse ficado nisso, a reação de Tanure não teria passado de uma reportagem capciosa, em que o assunto principal está distante do título e do pretexto. Talvez uma reação compreensível – não justificável – a uma reportagem arrasa-quarteirão. Mas a edição de domingo passado foi o início de uma campanha de difamação. De uma manipulação que agride a fé pública do jornalismo, agride as vítimas, agride sobretudo os leitores e deveria ter sido no mínimo noticiada por outros jornais, em primeiro lugar pelo O Estado de S. Paulo, onde até agora não se leu uma linha a respeito. Como se o JB não tivesse citado dois repórteres do jornal por reportagens publicadas no jornal, ou seja, aprovadas por seus editores. Como se fosse um assunto dos repórteres, não do jornal. Como se o assunto não existisse. Ou será que por trás das refregas com tinta e papel há conflitos empresariais não explicitados, que nenhum jornal conseguiu ou quis noticiar?
Na terça-feira (17/1), com chamada na capa, o Jornal do Brasil mirou em Lourival Sant´Anna: “Um livro em seis horas. Investigado por falsificação de dossiê, Lourival Sant´Anna escreveu livro sobre guerra no Afeganistão sem passar um dia no país”. Ao lado, uma reportagem dava voz ao Centro de Estudos do Terceiro Setor (CETS), da Fundação Getúlio Vargas, em crítica a Sant´Anna. Ele teria manipulado informações na produção de um Dossiê Estado cuja manchete foi “´Fonte de 55% das ONGs: dinheiro público”. O CETS, da FGV, diz em comunicado que Sant´Anna utilizou dados “com o intuito de embasar de forma imprecisa e incorreta a reportagem”.
A campanha do JB contra Sant´Anna começou a ser tratada no programa de rádio do Observatório da Imprensa de terça-feira, transcrito neste blog (“Guerra suja”).
Lourival Sant´Anna e Maurício Azêdo, da ABI, deram entrevistas veiculadas no dia seguinte (“Imprensa marrom”).
Um depoimento mais extenso de Sant´Anna foi publicado no mesmo dia.
O Observatório procurou Tanure e o diretor de Redação do Estadão, Ruy Mesquita, que não atenderam. O vice-presidente de conteúdo do JB e da Gazeta Mercantil, Marcos Troyjo, telefonou, mas para dizer que não falaria, e apenas sugerir a leitura da carta em que Tanure contesta a reportagem inicial do Estadão.
Manipulação persecutória
Se já havia jornalismo marrom na prática de atacar pessoalmente um repórter, na quarta-feira o Jornal do Brasil e a Gazeta Mercantil, que lhe reproduz as reportagens, romperam todas as amarras. Exacerbaram os métodos persecutórios, sem o menor sinal de respeito pelos leitores.
O assunto se deslocou para Goiânia. Os alvos passaram ser a vereadora Marina Sant´Anna, do PT de Goiânia, e a deputada federal Neyde Aparecida (PT-GO). A vereadora deu ontem entrevista ao Observatório.
Hoje, ela volta às páginas do Jornal do Brasil, acusada de ter o mesmo CNPJ de uma empresa de propaganda, a Logos, doadora da campanha que fez ao governo do estado, em 2002. Ao Observatório, Marina declarou que não tem CNPJ na vida privada (ela ocupa há anos cargos públicos) e que o JB deve estar se referindo a um CNPJ dado pelo Tribunal Regional Eleitoral para uso na campanha. “Aprovadas as contas, como foram, esse CNPJ desaparece”, disse.
Telefonemas do JB
No pé da reportagem principal, página 6, o jornal afirma: “A irmã de Lourival Sant´Anna não quer dar explicações sobre gastos de campanha. Ontem, determinou à empresa de telefonia de Goiânia que não fornecesse o número de assinante para ninguém. O Jornal do Brasil deixou recado no celular de Marina, solicitando que ela telefonasse, mas a vereadora petista não retornou.”
A vereadora disse que só hoje de manhã começou a ouvir recados e a verificar ligações recebidas em seu celular. Sobre o telefone doméstico, Marina diz que ele nunca foi divulgado em lista, porque ela só o usa para acesso à internet. “Há dez anos não uso o telefone de casa para falar, só celular. Fico muito pouco em casa”.
Marina Sant´Anna diz que está decidida a não tolerar injúrias e calúnias, mas ainda não orientou seus advogados a mover ação contra o Jornal do Brasil e a Gazeta Mercantil. Ela está convencida de que o JB usa em Goiânia o trabalho de “investigadores de fora da cidade, embora se possa imaginar que tenham algum grau de interlocução com pessoas daqui”.
Os jornais de Goiânia ainda não deram nenhuma notícia a respeito das acusações contidas nas reportagens sem assinatura do Jornal do Brasil, reproduzidas na Gazeta Mercantil. O JB quase não circula mais na cidade, esvaziada pela temporada de férias. Jornalistas e políticos de Goiânia têm se informado pela internet e por telefone. As reportagens não se tornaram, até agora, assunto político em Goiás.