Dá o que pensar a disparidade de tratamento nos três diários nacionais à manifestação do Cansei, ontem, em São Paulo.
O Globo a relegou ao canto direito de uma página par – uma espécie de fundo de quintal no espaço ocupado nos jornais pelo noticiário. Sob uma foteca equivalente à metade daquela que, no alto da página, ilustra a missa pelos mortos de Congonhas, em Porto Alegre, e o gélido título ‘´Cansei` promove ato ecumênico por vítimas’, 46 linhotas de coluna – corretas, mas apenas corretas – liquidam o caso.
Perguntar não ofende: se um evento rigorosamente igual em tudo ao que foi montado diante da Catedral da Sé tivesse ocorrido em frente à Calendária, teria sido tratado da mesma forma pelo jornal carioca? [Não quero dizer com isso que a sua cobertura ficou aquém do necessário, mas que todo órgão de mídia tem um que de bairrismo, lá isso tem.]
O Estado foi mais generoso com os cansados. Deu-lhes a metade superior de uma página, descontada a coluna que trata dos protestos piauienses contra um dos criadores do movimento, o presidente da Phillips do Brasil, Paulo Zottolo, que cometeu a tolice de usar o Piauí como exemplo pejorativo, numa entrevista ao Valor, do que precisou se desculpar até em matéria paga.
Sob um título quase tão frio quanto o do Globo – ‘´Cansei` faz seu primeiro ato em SP’ -, uma fotona e uma centena de linhas de coluna dividem o espaço disponível. Levando em conta o que o Estado pensa do governo Lula, uma cobertura modesta e tanto. Até hoje, aliás, o jornal não disse o que acha dos cansados. [Assim como foi o único dos três jornalões a não sair com um editorial sobre o caso dos boxeadores cubanos, a propósito do qual a Folha e o Globo desancaram o governo.]
A Folha, por fim, aparentemente estendeu tapete vermelho aos cansados: chamada com foto na primeira página; dentro, ocupando uma página inteira, duas matérias, cinco fotos e um quadro com frases recolhidas no local.
Por que então o aparentemente?
Primeiro, porque, para previsível desgosto dos figurões do movimento, o título foi na jugular do espírito da coisa, destacando o que mais merecia ser destacado do ato – e não, como tentaram, reduzindo-o a uma irrelevância: ‘Na Sé, ´Cansei` desemboca em ´fora, Lula´’.
Segundo, porque os textos assinados por Laura Capriglione, Paulo Sampaio e Leandro Beguoci também oferecem um retrato fiel da manifestação:
‘Sem uma palavra de ordem que sintetizasse um cansaço específico…’
‘Ivete Sangalo foi a grande estrela, sem dizer nada durante o ato. O público se espremia e gritava o nome dela…’
‘João Batista de Oliveira [conselheiro da OAB], o mestre de cerimônias, evocou o espírito militar e misturou um pouco mais as coisas na cabeça de quem tentava entender as intenções do movimento…’
‘Entre os ´cansados do Cansei` estavam a artesã e cozinheira Conceição Aparecida dos Santos: ´Os pobres é que estão cansados. Pedi aos organizadores para falar ao microfone, não deixaram…’.
P.S. O clamor de Cristovam
No próximo ato público dos cansados – se houver – alguém bem que poderia fazer a caridade de distribuir às mancheias cópias do artigo ‘Cansei também’, do senador e ex-ministro Cristovam Buarque, no Globo de hoje. Vejam por que:
Eu também cansei de gente que só quer levar vantagem, do governo paralelo dos traficantes, de pagar tantos impostos para nada, de tanta impunidade, de tanta burocracia, do caos aéreo, de CPIs que não dão em nada, de ver crianças nas ruas e não nas escolas, de presidiários falando ao celular, de empresários corruptores, de ter medo de parar no sinal, de bala perdida, de tanta corrupção, de achar isso tudo normal, de não fazer nada (publicidade do movimento cívico pelo direito dos brasileiros.)
Cansei também dos apagões nas paradas de ônibus, onde milhões de trabalhadores e estudantes esperam por transporte, debaixo de sol e de chuva, sob ameaça de assaltos, sem terem a quem reclamar e sabendo que sua tragédia será ignorada nos jornais. Do apagão da saúde nas filas dos hospitais, na cara doente do povo, no olhar de crianças assustadas e mães angustiadas.
Cansei da desigualdade com que a tragédia escolhe seus portadores, poupando os que podem comprar remédios, médicos, advogados, até alguns anos de vida, prorrogando a própria juventude.
Cansei dos que estão cansados com aviões atrasados, mas sempre se omitiram ante um país que não decola, por causa de omissão e equívocos, de falta de patriotismo e de prioridades.
Cansei da tolerância passiva ante os dois muros nos quais o Brasil esbarra: o muro do atraso e o muro da desigualdade.
Cansei do país campeão mundial da concentração de renda. E da burrice institucional que mede o progresso pelo número de carros engarrafados em ruas apinhadas.
Cansei dos que gritam e esperneiam contra a corrupção no comportamento individual dos políticos, mas usufruem da histórica corrupção nas prioridades da política.
Cansei da humilhação dos baixíssimos salários dos professores, mas também das direções sindicais que não se ocupam da tragédia das escolas fechadas, por causa da guerra civil dos morros ou de greves intermináveis, pura e simplesmente.
Cansei dos artistas e apresentadores que se dizem cansados da corrupção, mas que sempre votaram em corruptos, e que votarão neles novamente nas próximas eleições, pois preferem um corrupto amigo a um honesto que não é de sua turma.
Cansei dos publicitários que se cansaram da corrupção, mas que na próxima eleição farão alegremente a campanha dos corruptos que lhes pagarem bem. Cansei do marketing político que ganha para nos enganar e usa os ganhos para nos enganar ainda mais.
Cansei da política que nos ilude com ciclos econômicos que pouco deixam para a nação, como os do açúcar, do ouro, do café, da borracha, do algodão, da soja, da industrialização, e que agora nos iludirá novamente com o etanol.
Cansei da miopia dos que se negam a ver a oportunidade, e dos que não querem tomar as devidas precauções.
Cansei de um país que se diz sem racismo, mas não aceita o uso de cotas para aumentar o número de estudantes negros na universidade.
Também cansei do elitismo do movimento negro que se interessa somente nas cotas para os poucos que querem entrar na universidade, mas ignora os milhões de pobres — negros ou brancos — abandonados no caminho educacional, antes de concluírem o ensino médio.
Cansei da acomodação dos milhões de pobres que aceitam que seus pais e mães morram nas filas dos hospitais, porque a cura depende de poucos reais que eles não têm, e que sacrificam passivamente o futuro dos seus filhos, em escolas sem qualidade. Parece que acreditam que saúde e educação são direitos reservados por Deus apenas aos ricos.
Cansei, acima de tudo, da aparente impossibilidade de colocarmos juntos os cansados, que têm medo de perder seus privilégios, e os pobres, acomodados na sua falta de direitos.
Cansei, mais ainda tenho esperança de que um dia os cansados tenham patriotismo e os acomodados tenham consciência. E que juntos lutem por um país com uma escola boa para cada criança, independentemente da cidade ou da família em que tenha nascido.
Cansei também de tanta gente achar que isso é um sonho impossível.
Cansei, mas não me desesperei, ainda.
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