Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Debate sobre cotas segue firme na Folha

A discussão na mídia sobre os projetos das cotas raciais e do Estatuto da Igualdade Racial parecia ter culminado com os artigos e entrevistas publicados na Folha e no Estado do domingo, 9 de julho. Felizmente, não.

Louvados sejam os articulistas da Folha por manter o assunto vivo, com argumentos à altura de suas qualificações. Ontem foram dois textos, hoje mais um.

Dado que a Folha só dá acesso ao seu material na internet a assinantes do jornal ou do provedor UOL, transcrevo os três artigos, por merecerem a mais ampla divulgação.

O primeiro é do historiador Boris Fausto, presidente do conselho acadêmico do Grupo de Conjuntura Internacional (Gacint), da USP. Tem por título “O prisma desfocado”.

“Começo com duas certezas. Há um sério problema de discriminação racial no Brasil, e esse problema, embora tenha muitos contatos com o da pobreza e o da desigualdade social, tem marcas próprias. Convém lembrar, a princípio, que uma parcela considerável da população branca – e não apenas da elite branca – introjetou a noção de que o Brasil é um país em que há igualdade de oportunidades para todos. Não seria compreensível, assim, levantar questões em torno de diferenciações de raça.

Faço apenas breve referência a essa visão porque ela não integra o debate atual, embora tenha papel muito importante na ocultação dos problemas. Esclareço também, de passagem, que estou entendendo ‘raça’ não como realidade biológica, mas como construção cultural. Quando leio as linhas principais dos argumentos em confronto, me assaltam mais dúvidas que certezas.

Como desconfio que essa não seja apenas uma percepção individual, creio que vale a pena explicitá-las. Tomemos, por exemplo, a questão básica da diferenciação de categorias de cor. Segundo os críticos do Estatuto da Igualdade Racial e da lei de cotas, a tentativa de estabelecer uma diferenciação entre apenas duas categorias – brancos e negros – choca-se com a realidade do país, caracterizada por uma gradação de cores, gerada historicamente e assim percebida pela sociedade.

Os defensores da legislação promotora de igualdade racial estariam endossando, desse modo, uma rígida e artificiosa construção de duas raças, acabando por incentivar o que têm por objetivo combater. Na outra ponta, estão aqueles que defendem o estatuto em discussão no Congresso e a lei de cotas, sustentando que a divisão de raças já está profundamente inscrita em nossa sociedade, no acesso a empregos de média qualificação para cima, nas profissões de prestígio e em tantas marcas implícitas e explícitas que mancham nosso cotidiano.

A construção de um prisma de cores na sociedade brasileira, ao longo do tempo, é uma realidade tão incontornável quanto a da discriminação racial. Nunca se tratou de estabelecer um estatuto de sangue para distinguir entre negros e mestiços, como se fez no caso dos judeus, por exemplo, para separar cristãos de velha cepa e cristãos-novos, pois a diferenciação seguiu outros caminhos, que excluem a classificação explícita. Durante a escravidão, até certo ponto, a condição de escravo ou liberto estabeleceu uma fronteira.

Quando ela chegou ao fim, a diferenciação pela cor se tornou um critério informal, mas significativo, critério baseado na aparência, em que o ‘moreno’ se distinguiria do chamado ‘preto retinto’. Os defensores do Estatuto da Igualdade Racial tendem a encarar a gradação de cores e o tratamento diferenciado resultante dessa gradação como mais uma falsidade ideológica sobre as raças. Dizem também que nenhuma ação afirmativa será viável sem a categorização dual e o auto-enquadramento das pessoas em uma delas.

Na realidade, a legislação proposta está importando critérios válidos para outras sociedades, a dos Estados Unidos em especial, onde brancos e negros são duas raças historicamente distintas, na legislação e na percepção coletiva. Essa circunstância, em si mesma, não invalida a aplicação do modelo no Brasil, mas gera dúvidas quanto às suas conseqüências. Valeria a pena recusar o dualismo, como uma camisa-de-força que abriria caminho para novas posições racistas, ou valeria a pena ousar e tentar a experiência?

A pergunta exprime dúvidas e não uma posição de quem fica em cima do muro, mesmo porque quem levanta dúvidas nessa temática tende a receber lambadas de ambos os lados. Ao mesmo tempo, admitida toda a controvérsia em torno da desigualdade racial, há algo em si mesmo muito importante. A questão entrou na ordem do dia e veio para ficar, ao lado de outras que a antecederam, todas no sentido da promoção da igualdade de oportunidades, como é o caso das mulheres, dos índios, dos portadores de necessidades especiais.

Lendo as entrevistas da procuradora universitária Dora Lúcia Lima Bertúlio, do antropólogo Peter Fry, do historiador Luiz Felipe de Alencastro, nas páginas dominicais dos dois principais jornais de São Paulo (no domingo passado), combativas, mas não desqualificadoras, vi nascer um raio de esperança de que medidas contra a discriminação racial, de longo e médio prazo, com seus ensaios e erros, possam ser tomadas em outro clima, que não o do anúncio de catástrofes ou o da desforra.

Convém ressaltar que foram dados alguns passos para reduzir o alcance da discriminação, mas eles são ainda insuficientes. Para avançar, temos de abandonar a atitude, comum até os dias de hoje, de reconhecer a existência dos problemas, lamentar muito e passar a outros temas. Temos de reconhecer que a aplicação de critérios de mérito, em muitas instâncias da vida social, são truncados, quando não há igualdade de oportunidades para um contingente ponderável da população brasileira.”

O segundo artigo é do jornalista Marcelo Leite, doutor em Ciências Sociais e responsável pelo blog Ciência em Dia [cienciaemdia.zip.net]. O título é “Contra as cotas raciais, mas…”

“Em boa hora o governo federal ensaia desacelerar a tramitação do Estatuto da Igualdade Racial no Congresso, para aprofundar a discussão na esfera pública e possivelmente abrandar a exigência de cotas raciais no ensino universitário em favor de outro mecanismo de inclusão, talvez com base em critérios socioeconômicos.

Estão certos os que deploram no estatuto em exame um viés racificante (um neologismo para evitar a acusação fácil e envenenadora de que militantes anti-racismo seriam os ‘verdadeiros’ racistas). Seu artigo 23, que torna ‘obrigatória a inclusão do quesito raça/cor, a ser preenchido de acordo com a autoclassificação, em todo instrumento de coleta de dados do censo escolar promovido pelo Ministério da Educação, para todos os níveis de ensino’, fixa em documentos, para cada criança, um rótulo que hoje só existe culturalmente e só por isso carrega alguma esperança de superação na biografia.

O instrumento da cota racial, da reserva de vagas na universidade e no serviço público, também enfrenta dificuldade. Isso que está previsto no artigo 52 do estatuto jamais alcançará consenso, por afrontar o princípio do mérito individual. Tenta resolver a injustiça presente com mais injustiça (se tiver por base critério exclusivamente racial).

Mas… a questão não se resolve apenas propondo cotas socioeconômicas, nem defendendo a melhoria generalizada da educação pública. A primeira nada propõe acerca da discriminação adicional que sofre o negro pobre. A segunda joga a solução para as calendas e se mostra quase perversa, porque só um cego não vê que a educação caminha na direção oposta.

A insistência no mérito puro e simples – medido por essa coisa primitiva chamada vestibular – é insuficiente. Flagra-se não o mérito propriamente dito, mas um instantâneo do privilégio acumulado ou, inversamente, da sub-representação de negros no acesso dos pobres aos meios para… passar no vestibular.

O que espanta é o silêncio, na reação que se levantou contra o estatuto, acerca da experiência da Unicamp. Ali se concede um bônus médio de 5,6% na nota obtida no vestibular por alunos de escolas públicas, acrescido de menos de 2% para autodeclarados negros e indígenas. Isso elevou a participação dos alunos de escolas públicas de 28,7% para 33%, enquanto o número absoluto de negros e indígenas aumentava 57%.

Isso não fez despencar a qualidade do ensino universitário, como apregoam alguns fundamentalistas do mérito. Embora aprovados no vestibular com notas um pouco menores (com ajuda dos bônus), os favorecidos tiveram desempenho médio superior em 31 dos 56 cursos analisados num levantamento da Unicamp e empataram noutros quatro.

Eis uma alternativa às cotas raciais, enfim, que encara o mérito acadêmico como um processo, não como um ponto fixo a ser capturado só no momento do vestibular. Vários favorecidos provaram que eram de fato os melhores. É por esse tipo de solução criativa, generosa e construtiva que adversários dos absurdos do Estatuto da Igualdade racial deveriam bater-se, indo além da simples reação.”

Por fim, o artigo “Os mitos raciais”, do economista Luiz Carlos Bresser-Pereira, professor emérito da Fundação Getúlio Vargas.

“Dois manifestos dividiram a sociedade brasileira: um contra a definição de cotas para negros e índios nas universidades e a reserva de vagas para minorias no serviço público; outro, a favor. Nos dois manifestos, impressionam a falta de argumentos e a ausência de propostas alternativas dos adversários das duas políticas de ação afirmativa, a não ser a reafirmação da universalidade dos direitos -da igualdade de todos perante a lei.

Esse é um princípio fundamental da nossa Constituição, mas, sendo ela um documento do século 20, não é um princípio vazio de conteúdo social. No século 18, a igualdade de todos perante a lei representava um grande avanço político quando a burguesia liberal lutava contra o Estado absoluto: era a luta de uma classe média em ascensão contra uma aristocracia montada em cima de privilégios legais.

Depois disso, porém, o mundo avançou politicamente. Percebeu-se que não bastava a igualdade perante a lei, era preciso também a igualdade de oportunidades entre as classes sociais e entre as raças. No Brasil, preocupamo-nos apenas com a igualdade social. Alguns avanços foram alcançados nesse campo, embora o país continue um dos mais desiguais do mundo. No plano racial, porém, fomos incrivelmente displicentes. Apoiados no fato de que somos um país mestiço – e, de fato, somos -, supusemos que tínhamos aqui uma democracia racial – ou quase. Não a temos – nem quase. Caetano Veloso estava certo quando concordou que a democracia racial no Brasil era um mito e acrescentou: ‘Mas um belo mito’.

De fato, é um belo mito, no sentido de nos fazer orgulhosos de nossa mestiçagem e de nos levar a rejeitar toda discriminação racial. Mas a rejeição é teórica. Na prática, a discriminação no Brasil é fortíssima, conforme todas as pesquisas comprovam. Se o Brasil é injusto no plano social, é ainda mais no racial.

Nas universidades, por exemplo, há apenas 2% de negros estudantes e apenas 1% de negros docentes, embora eles constituam 45% da população brasileira. É por essa razão que há alguns anos surgiu o movimento no sentido de implantar no Brasil iniciativas de ação afirmativa. Quando o movimento começou, os nacionalistas de ocasião disseram que isso era invenção americana; alguns hesitaram em lembrar o triste argumento do branqueamento gradual; outros apontaram as dificuldades em distinguir as raças no Brasil; a maioria dos contrários argumentou que a definição legal de raças só agravaria a situação.

Por quê? Porque tornaria as diferenças raciais, que no Brasil são muitas vezes imprecisas, claras e, por essa razão, poria em cheque a ‘paz racial’ ou a ‘harmonia natural’ que regeriam as relações de raça no país. Vemos, assim, que há outras versões do mito da democracia racial: versões que colocam a ordem, transmutada em paz e em harmonia, no centro da questão. O conservadorismo de nossa sociedade reaparece assim com toda a força.

Além dos argumentos liberais da igualdade perante a lei, também os argumentos da defesa da ordem ressurgem no debate. A paz social é necessária, mas não é perpetuando a injustiça que ela será alcançada. Não basta que se almeje ‘um Brasil no qual ninguém seja discriminado’, como diz o manifesto contra. É preciso ter a coragem que 30 universidades brasileiras já tiveram e começar a adotar ações afirmativas contra a discriminação. As ações afirmativas que estão sendo propostas não são apenas justas: são razoáveis. Elas não ameaçam a ordem, apenas fazem avançar modestamente a justiça.

Têm razão os subscritores do manifesto a favor quando afirmam que o documento contra “parece uma reedição, no século 21, do imobilismo subjacente à Constituição da República de 1891: zerou, num toque de mágica, as desigualdades causadas por séculos de exclusão e racismo e jogou para um futuro incerto o dia em que negros e índios poderão ter acesso eqüitativo à educação, às riquezas, aos bens e aos serviços acumulados pelo Estado brasileiro.”

Ganhe o dia lendo esses artigos.

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